*Texto da jornalista Giovanna Castro
Nesse dia totalmente anti-climático, pós Quarta-Feira de Cinzas, fim de festa, fim de carnaval, li uma notinha num renomado site noticioso que informava sobre os cachês dos artistas que comparecem à folia de Momo de Salvador. Acredito que não seja novidade para ninguém que a grande maioria dos artistas que batem ponto na folia baiana vêm para cá com todas as suas despesas pagas, hotel, transporte daqui pra ali e de lá pra cá, alimentação e mordomias, muitas mordomias.
Claro que há aqueles que vêm porque gostam mesmo, mas estes são exceções. A notinha a que me refiro dava conta de que o valor da “presença” de um artista desses em um camarote chega a R$50 mil. Creiam, R$50 mil para ficar dando pinta em frente às câmeras e emprestando a imagem que atrai trocentos fotógrafos ao camarote e, por conseguinte, às marcas patrocinadoras.
Fiquei impressionada com a quantia, em boa parte por acreditar que a festa por si só poderia atrair essas “celebridades”, muitas delas, personagens de si mesmos, celebridades de segunda ordem. Tenho a tendência a acreditar que ainda resta esperança para o mundo, apesar de me dar mal quase sempre com esses pensamentos otimistas. Imagine só, um ator iniciante de Malhação, que não deve cobrar R$ 50 mil, logicamente, mas tem seu preço. Seu sorriso para as lentes e a dancinha em muitos momentos desengonçada, custa caro.
Considero importante observar a que ponto chegou a estrutura que gira em torno da festa. Não sou do tipo nostálgica, que acredita que o que passou é sempre melhor do que está sendo ou do que está por vir, mas sou daquelas que acreditam que o Carnaval de Salvador perdeu a sua essência democrática que, ironicamente, continua sendo vendida pelos quatro cantos do mundo sem contestação por órgãos governamentais de fomento ao turismo.
Aqui dentro, conforme atesta pesquisa divulgada recentemente pela Secretaria de Cultura e a Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, no ano passado, nada menos do que 77% dos soteropolitanos não deram as caras na rua, nos quase sete dias de festa. O principal motivo alegado é a violência, mas cá com meus botões, percebo que a superficialidade das “presenças” nos camarotes e a intensa comercialização da festa, antes espontânea e produto da inventividade do povo, influencia nesta escolha.
Sem falar no fato de que o espaço delimitado pelas cordas, em cada um dos blocos e especialmente nos mais caros, está repleto de turistas predominantemente de outros estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Brasília. Ótimo para nossa economia, mas será ótimo para o Carnaval que se auto-entitula “o de maior participação popular do mundo”?
Com o passar dos anos, fui percebendo que o nosso Carnaval fica cada vez mais parecido com o do Rio de Janeiro, só falta o sambódromo e o tal circuito privado, tão propalado pelo cantor Durval Lélys, para sacramentar de vez a lógica comercial. É no mínimo emblemático que, nos últimos anos, o Rio tenha trabalhado para resgatar sua folia de rua, apontando para uma solução alternativa ao sambódromo e aos camarotes, ambos pagos.
Meca das “presenças”, o Rio de Janeiro apresenta cifras bem diferentes. Madonna, por exemplo, recebeu de uma empresa brasileira de bebidas como doação para a sua Ong que ajuda crianças, nada menos do que US$ 1 milhão e, não por acaso, deu as caras no camarote da cervejaria no sambódromo juntamente com os filhos e o namorado, Jesus Luz. Me questiono se é esse o modelo que queremos de Carnaval para Salvador. Um modelo que segrega, que empurra o folião local pra longe da festa e oferece louros para quem é de fora. Até por isso é necessário trazer presenças vips para os camarotes, para dar um algo a mais para o folião que paga caro para sair de seu estado e se jogar na folia por aqui.
Mas o fato é que muito deve ser repensado em relação ao nosso Carnaval que cresceu muito e não espalhou divisas e divertimento para todos. O que se vê, fora dos holofotes das emissoras de TV, é o baiano se esfolando de trabalhar como vendedor de churrasquinho, curtindo apertado nas ruas transversais, crianças catando latinhas na rua colocando em risco a própria vida e outras delas se perdendo dos pais como foi o caso de um garoto que acompanhava a mãe que trabalhava como cordeira e acabou se separando dela no meio da confusão.
Mais do que um Estatuto de Festas Populares que defina sobre o uso ou não de espetinhos nos circuitos da folia ou regule a atuação dos cordeiros – nada mais justo, afinal eles sofrem grande exploração -, deve-se pensar no Carnaval que se deseja para a cidade com um planejamento de longo prazo. Aquele baseado nas raízes do soteropolitano que muito bem soube construir sua festa a fim de torná-la atraente para muitos, ou aquele que aposta nas “presenças” totalmente desconectadas do sentido da folia local e que daqui só levam regalias e nada deixam como contribuição para a riqueza e manutenção da festa?