Conto: Excessos de linguagem

Tentei me fazer prolixa, me exceder – complicar, confesso. Divaguei além do que eu mesma compreendia. Escolhi as metáforas mais impróprias, abusei dos pleonasmos. Me apropriei dos sons, exagerei nas paronomásias. Não resisti a acrescentar uma inversão aqui, outra ali. Não, eu nada escrevia. Discorria verbalmente, ligeira e impensadamente. Me recuso a aceitar a ideia do exercício mental, teste, prova. Só não queria ser compreendida. Seria mais fácil assim.

A ironia poderia ter dado melhores resultados, mas não quis ser tão cruel. Meus excessos bastaram-se naquela reunião irritante de vernáculos. Linguagem, pensamento, som… figuras. Sim à antítese; sim à gradação; sim à metonímia… Elas saíam de mim uma após a outra, tropeçavam entre elas. Quanto mais absurdas as expresões ficavam, mais absurdas eu as tornava. Mais e mais, cada hora mais, cada momento mais. O tempo passava lentamente, enquanto eu vomitava novas sílabas.

O céu já estava acinzentado, quando me dei conta de que havia chegado ao fim. Coloquei um ponto final na minha explanação bruscamente. Ele ouvira cada linha, calado. Sua feição inerte me afligia. Não fez qualquer comentário, qualquer interrupção. Não me pediu a palavra um momento sequer. Aqueles segundos de silêncio que se seguiram pareciam horas inteiras pra mim. Cheguei a crer que ele nada falaria. Que levantaria, mudo, e sumiria na escuridão. Meus pensamentos já iam distantes, quando ele se pronunciou:

-Eu não vou desistir de nós dois.

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Conto: Conformismo

Crédito da ilustração: Clarissa Pacheco

-Você conseguiu o mais difícil, me fazer baixar a guarda… e agora quem levanta a guarda é você… Depois de tanta insistência, você simplesmente recua… Eu não consigo te entender…

[silêncio]

-O que eu preciso fazer pra você confiar em mim? Pra você acreditar que eu estou a fim de enfrentar o mundo por nós dois? Pra te mostrar que eu estou disposta a comprar essa briga, mesmo sabendo o quanto vai ser difícil…

-É medo…

-Medo? Medo de que?

-Medo de correr o risco e perder você… Medo de assumir essa relação, de comprar essa briga e tudo dar errado… Do jeito que estamos, mesmo que dessa forma estranha de viver a dois, terei você a vida inteira. Se a gente arriscar e não der certo, perderei você pra sempre…

-Mas você não acha que a gente pode se esforçar pra fazer dar certo ao invés de deixar de arriscar por medo de dar errado? Você não acha que esse é um risco que vale a pena correr?

-Você não entende… O risco de perder você nunca valerá a pena correr.

[Lágrima e silêncio]

[Silêncio e lágrima]

– Eu amo você. Mas nunca vou poder ter você do jeito que eu quero. E eu prefiro te ter por perto assim, desse jeito, apenas em minha cama, do que não ter você em minha vida. É o conformismo mais medíocre que já vivi.

[Silêncio e adeus]

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Conto: Na fila do supermercado

Crédito da ilustração: Clarissa Pacheco

Letícia estava na fila do supermercado, cansada depois de um dia inteiro de trabalho. Só conseguia pensar em sair dali correndo, largar todas as compras e ir pra casa tomar um banho e dormir. O local estava lotado, pensou até fingir uma gravidez – as gordurinhas ajudariam – e pegar a fila preferencial. Depois pedia perdão a Deus. Desistiu, com receio de ele não a perdoar. Rodara todos os caixas, para ver se acharia uma fila menor. Nada.

O humor não era dos melhores. Já estava há duas noites sem dormir direito, efeito das mudanças de horário dos plantões. Mentalmente, xingava a quinta geração de quem inventara as filas de supermercados e a sexta geração de quem inventara trabalho na madrugada. O rosto não escondia a raiva de estar ali: testas frisadas, olhos semicerrados e um bico de assustar qualquer um.

Impaciente e descuidada, ansiosa por chegar logo ao caixa e se livrar da tarefa, Letícia empurrou o carrinho de compras além do que deveria. Por pouco não atropela o pé do rapaz que estava à sua frente, conversando com um amigo. Constrangida e sem jeito, deixou o sorriso se abrir para pedir desculpas.

“Você tem um sorriso lindo. Um dos sorrisos mais lindos que já vi na minha vida”, foi a resposta do rapaz. Letícia voltou a sorrir, desta vez um pouco sem graça pelo inesperado elogio, e agradeceu a gentileza. O rapaz descarregou suas compras no caixa e após pagar a conta, disparou: “Você deveria sorrir sempre, andar sorrindo. Seu sorriso é capaz de fazer alguém feliz”.

Desta vez é ele quem sorri, e ao virar para ir embora, ouve de Letícia: “E você deveria elogiar sempre. Seu elogio é capaz de fazer alguém feliz”. Ambos sorriram, o rapaz seguiu seu rumo, e Letícia continuou descarregando suas compras, mas agora com um leve sorriso no rosto.

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Conto: O ambulante, o motorista e a água

Sinal vermelho. Enquanto os carros aguardavam na fila a indicação para seguir adiante, os vendedores ambulantes passeavam de um lado a outro, mercando garrafas de água e refrigerante. “Ei, me arranja uma água? Quanto é?”, berrou o condutor. Ágil, o ambulante correu para o lado dele: “Um real”, oferecendo a garrafinha de 500ml. O motorista sacou do bolso uma nota de dois reais e, ao tentar pagar pela água, ouviu um: “Não tenho troco”.

Para tentar garantir a venda, o ambulante começa a chamar por um colega do outro lado da pista. “Ô Jaiiiiir…”. Insistentemente ele grita o nome do amigo, na esperança de que ele tenha um real para o troco. Mas Jair, entretido em sua própria negociação com um outro motorista, não ouviu o apelo. O sinal abriu. O condutor precisava dar a partida no carro e, sem troco, devolveu a garrafinha. Sem titubear, o vendedor retrucou: “Não, moço, leve a água. Pode levar pra beber. O senhor não vai ficar com sede, não”.

A reação foi imediata. O motorista sorriu um pouco constrangido, agradeceu a gentileza e entregou a nota de dois reais. “E você pode ficar com o troco”. O vendedor segurou a nota e retribuiu o sorriso e o agradecimento. Rapidamente, correu para o passeio, liberando a pista ao trânsito. O motorista arrastou o carro, seguindo seu caminho, divagando sobre a situação. Há quanto tempo vivenciara algo assim? Não lembrava. Mas percebeu, naquele momento, que ainda havia esperança na humanidade e que solidariedade podia ser mais que uma palavra no dicionário.

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Conto: Superação

Lágrimas que correm pelo rosto descontroladas, pensamentos desordenados em busca de um porquê, uma justificativa. O sentimento de culpa é cruel, avassalador, corrói as ideias na velocidade da luz. A culpa é minha! Eu fiz tudo errado! Mas o que mesmo eu fiz de errado? As respostas se embaralham, brincam de esconde-esconde. O desespero vai aumentando em progressão geométrica. Saio pelas ruas, sem rumo, perdida em mim mesma, tentando encontrar-me em alguma esquina, querendo entender o que não é para ser. Uma angústia exacerbada vai tomando conta de mim.

Sempre soube que doía, mas nunca imaginei que tanta dor, sofrimento e decepção podiam habitar um coração concomitantemente por tanto tempo. As lembranças atormentam dia e noite. De repente, parece que nada foi ruim, só consigo recordar os bons momentos. Mas a gente estava brigando tanto… Onde foram se abrigar ESTAS memórias, logo agora que dependo delas para sobreviver? Dói mais um pouco, o frio na barriga se intensifica, mais lágrimas fogem dos meus olhos, autônomas, independentes. Silenciosa, rezo apenas pela chegada do amanhã, imploro. Ele chega, mas ainda dói.

Não consigo me concentrar nas tarefas do dia. Sinto vergonha de pedir a Deus para esquecê-lo, depois de insistentemente pedir para que ele um dia fosse meu. Sinto tanta coisa agora, tanta, uma mistura de sentimentos e sensações… Uma semana se passou, e ainda dói. Um turbilhão de pensamentos povoam minha cabeça, tudo junto ao mesmo tempo. Como as músicas são estúpidas, letras estúpidas. Elas arrancam mais lágrimas de mim. Desligo o som. Sento, levanto, deito, ligo a TV, choro. Amanhã chega, e depois de amanhã, e depois. Um mês…

As músicas estão menos estúpidas. O sono já consegue me ninar, durmo. Já lembro das nossas discussões e de seus adjetivos mais marcantes. Egoísta. Individualista. Orgulhoso. Lembro do conselho da terapeuta, e pela primeira vez, volto a sorrir. “Você não precisa querer chegar logo ao topo. Só precisa subir o primeiro degrau”. Ela tem razão.

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Conto: Engasgada

Crédito da Ilustração: Clarissa Pacheco

-Eu… não sei o que te dizer… Só queria saber por que você está me falando isso agora…

-Não aguentava mais guardar tanto sentimento dentro de mim. Já esperava essa sua reação, a surpresa. Quer dizer, cheguei a achar que podia ver um sorriso no seu rosto… Mas pelo visto…

-Não, não é isso… É que você tinha razão, quanto à surpresa. Eu realmente não sei o que dizer, não sei o que fazer…

-Mas você não precisa dizer nada. Não precisa fazer nada também. Sei lá. Se quiser dizer o que exatamente está pensando nesse momento, eu aceito ouvir.

[Suspiro. Silêncio]

-Olha, eu não estou conseguindo ordenar meus pensamentos. Estou me sentindo meio engasgada…

-O que te falei foi tão ruim assim? Pra te deixar engasgada?

-Já falei que não é isso…

-E é o que, então?

-Não sei… Me leva pra casa?

-Tem certeza que é isso que você quer?

-Tenho sim.

-Está bem.

[Silêncio. Adeus]

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Conto: Varrendo a vida

As janelas permaneciam sempre fechadas. A porta só abria quando Alice precisava sair para resolver as demandas da vida. O silêncio naquela residência causava um certo desconforto entre os vizinhos. Nada se via, nada se ouvia. Se alguma coisa acontecesse a Alice ali dentro, ninguém notaria.

Exceto à noite, quando a mulher de meia idade e expressão cansada abandonava o isolamento para realizar a única atividade que a permitia ter um mínimo de convívio social naquele ambiente: varrer a rua. Era uma tarefa diária, executada de forma primorosa e pontualmente à meia-noite.

Abria as portas vermelhas, empunhava a vassoura e encetava o processo de pôr fim aos resíduos abandonados na calçada. Não se ouvia uma palavra sequer, apenas o esfregar ligeiro da piaçava no chão. Poeira alguma conseguia resistir à sua insistência, que se assemelhava a uma compulsão pela limpeza. Seus critérios, ninguém compreendia. Uns dias, a tarefa não durava mais que poucos minutos. Em outros, eram horas consecutivas, madrugada adentro.

Alguns vizinhos julgavam-na louca. Alice tampouco passava imune pelas crianças, que soltavam piadinhas nas poucas oportunidades em que se mostrava durante o dia. Houve uma série de especulações por meses, desde que Alice se mudara para a nova vizinhança. Nunca houve respostas, e o assunto fora discretamente encerrado nas rodas de bate-papo. O assunto, sim, mas não Alice, que, ignorando comentários e indagações, mantinha-se firme na árdua missão de tentar varrer para longe as lembranças de seu passado.

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Conto: Coma

Eu sinto seu cheiro, sei exatamente quando você entra aqui no quarto. Permaneço inerte, olhos cerrados, sim, é verdade. Não significa que não estou aqui, que não estou te ouvindo, como você costuma repetir aos médicos e enfermeiras.

Eu te escuto, meu amor. Escuto cada palavra sua. Tento responder seus questionamentos, acalentar a sua angústia, reagir. Enquanto você imagina estar falando sozinha, eu vivencio um diálogo intenso e doloroso.

Não, meu bem, não chora. Me aterroriza ouvir o seu choramingo, parte meu coração. Suas lágrimas caindo sobre meu rosto incessantemente me desespera, dói. Eu sei que você não queria estar aqui, eu também não.

Você tem razão, não sei mais quando é dia ou anoitece, mas sei exatamente os dias e noites que passamos juntos. Rio por dentro, isolado em minha própria solidão.

Meus dias aqui têm sido cheios de lembranças e recordações. É a forma que encontrei de eternizar nossa felicidade, de esquecer o quão você tem sido triste ao meu lado, hoje.

Queria ouvir a voz das crianças, e entendo você não trazê-las aqui. São tantos tubos em mim, elas ficariam assustadas. Compreendo sua decisão, você sempre foi tão sensata. Me orgulho tanto de ter você ao meu lado.

Não sei há quanto tempo estou aqui, perdi a noção. A única coisa que sei é que não suporto mais ouvir a tua dor. Adoro esse seu perfume. Ando tão confuso das ideias. Imagino se não seria melhor ir embora para sempre. Ultimamente tenho pensado nisso com mais frequência. Nunca te percebi tão infeliz. Preciso acabar com isso…

Talvez seja melhor me entregar, talvez…

Tchau, amor.

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Conto: Despedida

Maristela estava à beira da morte, no leito de um hospital, presa em um complexo de fios e máquinas. A família, já desenganada, aguardava apenas o último suspiro da matriarca. Joaquim, marido há 50 anos, ia visitá-la diariamente.

No costumeiro horário, com a bengala em mãos, o andar manso e o rosto sereno, entrava no quarto da esposa e conversava sobre as notícias da TV, as novas travessuras dos netos e declarava seu amor. Despedia-se com um beijo na testa e voltava para casa.

Naquela manhã, Joaquim repetira sua rotina. Acordou cedo, banhou-se, escolheu a roupa mais elegante do armário, seguindo para mais uma visita. Desta vez, o assunto seria outro, embora a tranquilidade fosse a mesma. Sentado em uma cadeira estrategicamente posicionada ao lado da cama da amada, esforçou-se para se aproximar o máximo possível de seu ouvido. Com a voz baixa, quase sussurrando, disse que aquela seria a sua última visita, ele não voltaria mais ao hospital. Ficaria na casa dos dois, à espera dela.

O encontro foi mais rápido que o habitual. Despediu-se logo em seguida. Beijou-lhe a testa. Levantou com a dificuldade inerente à idade e tomou o rumo de volta a sua casa. Ao chegar, embora ainda sob o sol da tarde, colocou o pijama de seda no corpo. Joaquim se deitou e fechou os olhos para dormir. Não mais acordou. Ele não voltou mais ao hospital, como dito. Preferiu deixar o nosso mundo antes dela, para esperá-la lá, onde quer que ela vá.

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Conto: Hora de dizer adeus

-Eu quero o divórcio, Dom!

-Hã??! Do que você está falando, Raquel?

-Divórcio, separação, fim… Acabou, Dom! Não dá mais para ficarmos juntos.

-Como assim??? Do nada??? Está tudo bem, e de repente você toma essa decisão assim??? Sozinha???

-Eu não tomei essa decisão sozinha, Dom. Você me ajudou, e ajudou muito!

-Eu te ajudei??? Você está ficando louca????Do que é que você está falando??

-De tudo aquilo que você não quis ouvir durante nossa relação. Tudo o que você achou que era bobagem e decidiu deixar pra lá…

-Deixe de loucura, Raquel! Eu sempre te ouvi, ouvi todas as suas queixas, todas as reclamações…

-Ouviu… E não fez nada para mudar, pelo jeito, só ouviu mesmo. Que inútil esse seu modo de “ouvir”.

[Dom se jogou no sofá, colocou os cotovelos sobre as coxas e enterrou o rosto nas mãos. Respirou fundo por alguns segundos e levantou a cabeça. Ao tentar argumentar, foi interrompido por Raquel]

-Pois é, Dom, a decisão está tomada. Obrigada por torná-la mais fácil nestes últimos meses. Não adianta gastar palavras em vão. Guarde-as para o dia em que elas forem realmente necessárias.

[A pequena mala com os objetos pessoais já estava pronta. Em um rompante, ela jogou a sacola nas costas e saiu da casa de Dom sem olhar para trás]

Nos últimos três meses, Raquel ensaiava em frente ao espelho a conversa que nunca tivera coragem de começar. Era assim, diariamente, até as 18h, quando Dom chegava do trabalho, cumprimentando-a com o rotineiro “boa noite, amor”. Naquele momento, todas as suas vontades se entalavam no coração que ela era incapaz de dominar. Ao tardar da noite, na cama do noivo, pregava os olhos alimentando uma chama de que amanhã, tudo iria mudar.

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