Fernando Pessoa: “um enigma em pessoa”

Minha estima por Fernando Pessoa é comparada àquela que nutro por Pablo Neruda. Para mim, são dois grandes nomes da poesia do século XX, sem sombra de dúvidas. O português Pessoa, rei dos heterônimos. Sim, os personagens que criou durante a vida, todos eram carregados de personalidade forte e bem desenhada. Como não lembrar de Álvaro de Campos ou Alberto Caeiro, ou ainda de Ricardo Reis? Todos tão reais, facetas do Fernando Pessoa.

Fernando Pessoa

Sobre a vida de Pessoa, pouco sei. Recordo-me apenas de que viveu parte da adolescência na África do Sul, que perdeu o pai muito cedo, de tuberculose. Também lembro-me de ter lido em algum lugar sobre o gosto exagerado pelo álcool, vício que teria sido decisivo para a morte precoce, aos 47 anos, de cirrose hepática. E mesmo no leito de morte, Pessoa eternizou sua poesia, ao declarar “I know not what tomorrow will bring” (Não sei o que o amanhã trará).

“A tua carne calma é fria em meu querer. Os meus desejos são cansaços. Nem quero ter
nos braços meu sonho do teu ser.”

De tanto criar pessoas, Pessoa se recriou. A resposta que muitos buscavam era para a pergunta “quem é ele?”. Seus personagens tornaram sua vida mais misteriosa ainda. Muitos pensavam inclusive se não seria o próprio Pessoa mais um de seus personagens. Ele morreu sem nos esclarecer a questão. Melhor que tenha sido assim. É como a expressão usada pelo crítico brasileiro Frederico Barbosa: “Pessoa é um enigma em Pessoa”.

Fernando Pessoa

Não me canso de ler Fernando Pessoa. A cada leitura, redescubro um fascínio ainda maior por suas palavras. Fernando Pessoa me ganhou na primeira poesia que li dele, que diz: “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas – a da minha nascença e a de minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus”. Para uma adolescente em busca de seu próprio caminho, nada podia ser mais significativo.

“Não sei, mas meu ser tornou-se-me estranho.E eu sonho
sem ver os sonhos que tenho.”

A partir dali, viramos caça e caçador. Eu, em busca de tudo e qualquer coisa que tivesse a sua assinatura por trás. Logo em seguida, descobri os personagens que havia criado, soube das biografias que instituiu para cada um deles, das diferenças tão bem delineadas. Me apaixonei de vez. A sensação era que eu estava diante de uma pessoa imaginária, de tão discreta, cheia de imaginação e possuidora de um grau de intelectualidade intangível, fora do comum.

“És melhor do que tu. Não digas nada: sê! Graça do corpo nu
Que invisível se vê.

Algumas coisas de Pessoa seguem abaixo. Eu simplesmente não consigo fazer uma seleção. Cada texto que releio, volto a me apaixonar perdidamente, como se estivesse diante de uma primeira leitura. Cada linha que descubro me encobre de mais admiração. Não consigo pinçar da obra de Pessoa, coisas que mais gosto, ou que mais me instigam. Eu só consigo enxergá-lo como um conjunto. Pessoa é um todo e cada trecho é apenas uma parte, um pedaço do universo que é sua poesia.

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Para inspirar
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Cancioneiro

Nota preliminar
2 – Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E – mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem – pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser “Há sol nos meus pensamentos”, ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.

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Tenho tanto sentimento

Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

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Entre O Sono E Sonho

Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre –
Esse rio sem fim.

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Grandes mistérios habitam

Grandes mistérios habitam
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.

Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.

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Viajar! Perder países!

Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.

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Análise

Tão abstrata é a idéia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perço-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a idéia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

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Para ler
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alvaro de camposPoesia Completa de Álvaro de Campos

ricardo reisPoesia Completa de Ricardo Reis

alberto caeiroPoesia Completa de Alberto Caeiro

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