Homem de Palavra: “Onde a dor não tem razão”

Onde a dor não tem razão

*Carlos A. Santana

De há algum tempo atrás tenho vivido uma experiência em parte dolorosa, em parte surpreendentemente, digamos, educativa, sob o ponto de vista espiritual (sem querer ou pretender ser melodramático). Tudo começou em abril do ano passado quando o meu mundinho corriqueiro se diluiu em fluidos sanguíneos e o meu mais profundo desprezo por excertos da categoria médica aflorou com violência a partir do diagnóstico de leucemia no meu filho mais novo (Gabriel, 15 anos à época). A partir daí, calvários à parte já que cada um tem o seu mais íntimo, comecei a frequentar assiduamente, ambulatórios, laboratórios, quartos hospitalares… enfim, a liturgia do cargo de ser pai. No entanto, e aí é que vem tudo de bom dessa experiência que continua dolorosa, comecei a olhar, com um olhar mais sensível – característica humana muito mais presente na mulher, a sensibilidade, a sintonia fina com o mundo em seu todo – tudo o que me cercava.

Nas minhas idas à clínica, me vi, subitamente cercado de não-dores, de não-doentes absurdamente doentes. Alguns, com pouco tempo de viver esse mundo daqui. Outros, lutando para tentar ver o amanhecer seguinte. Dramático? Não. Apenas o que via ou sentia. Via e sentia a dor das mães (onipresentes) e a perplexidade dos pais (como eu, minoria absoluta). Mas, deixei de ter uma identidade única para ser “pai”. Apenas “pai” se tornou o meu nome como o de todos os poucos outros que lá vão com os olhos marejados, vermelhos, mas secos (homem não chora!). Me tornei muitos.

Mas não se trata bem disso, o que quero falar. Afora a minha tristeza, a dor do meu filho (que também se tornou a meus olhos, muitos – todos aqueles que passam à minha frente na sala de espera, na enfermaria ou que me olham curiosos enquanto não consigo cochilar ao lado de Gabriel, como eles, meio sedados e com uma agulha levando uma mixórdia de química para suas veias – acabei surpreendido com a forte presença e, ao mesmo tempo a ausência da dor naquele ambiente onde a parca caminha com naturalidade.

Crianças cheias de dor física, brincam pintam e bordam indiferentes à própria dor e só a acusam quando se torna insuportavelmente adulta. No entanto, adultos sucumbem diante da dor infantil e perdem as forças enquanto os pequenos se superam. Nos olhos de todas as matizes, há sim, sofrimento, mas bem lá no fundo. Uma sombra fugidia. Cada novo paciente é um novo amigo, mais um parceiro para uma brincadeira que pode não mais acontecer na manhã seguinte. Fazem do agora, uma festa. Da dor, algo que simplesmente está ali. Não a ignoram. Sentem-na. Sofrem-na. Impávidos colossos, ensinam-nos a viver… enquanto, às vezes, estão à morte.

*Carlos Santana é jornalista e radialista.

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