A mania nacional é se meter na vida dos outros, principalmente das outras. E ditar regras de comportamento. E determinar o que é certo ou errado até na vagina alheia. Presenciei uma conversa em que os interlocutores torciam o nariz para a ginecologia estética. Um dos alarmados com a prática era um homem cheio de ‘boas intenções’. Ele defendia que uma feminista que se preocupa com a estética da vagina está traindo o movimento.
Bom esclarecer que não se tratava de trair movimento nenhum, porque as feministas defendem todos os movimentos baseados no respeito e na dignidade. Se alguém, principalmente homem, explica que o feminismo é sobre proibições, não entende nada do assunto. Feminismo é sobre liberdade, sobre ter o direito de ser e fazer o que quiser, sendo respeitada pelas próprias escolhas.
É sobre igualdade de direitos e de oportunidades. Sobre autonomia, autoconfiança, autoestima. Sobre não ceder às pressões ditadas por quem insiste em rotular, enquadrar e ditar regras de comportamento para as mulheres, como se elas fossem coisas sem vontade, propriedade, objeto inanimado. Como se suas vaginas, embora estejam em seus corpos, pertencessem ao coletivo e todo mundo pudesse palpitar!
Vários movimentos em um só
O que se chama de movimento feminista teve muitas fases desde a sua origem. E cada fase dessas fez jus ao tempo histórico onde esteve inserido e deu sua contribuição para que nós chegássemos onde estamos. Daí para a frente é com a gente e com as gerações que vão nos suceder, porque ainda existe muita coisa a ser conquistada.
De alguns anos para cá, o feminismo deu mais saltos evolutivos. E, cada dia mais, vem se tornando não um, mas diversos movimentos que se apoiam e conectam, porque existem muitas formas de vivenciar o feminino. E, por isso, há quem prefira agora dizer feminismos, no plural, para incluir todas as vertentes, ao invés de incentivar clubinhos.
Mulher não é ‘tudo igual’. Vagina não é ‘tudo igual’, como pensam os machistas de plantão. E tem mulheres que vivem experiências e opressões específicas, como as trans, as negras, as lésbicas, as gordas, etc.
Os feminismos vêm buscando se abrir para essa diversidade de vivências do feminino porque o mundo vem buscando se abrir para a diversidade das pessoas. O caminho ainda é longo, cheio de avanços e recuos, mas a gente chega lá, tem de continuar caminhando e superando os obstáculos.
Voltando a focar na vagina
Esclarecidos, rapidamente, o que são os feminismos deste século XXI onde vivemos, quero falar da vagina, porque é esse determinado aspecto da anatomia de determinados corpos femininos que as pessoas querem controlar.
Vamos filosofar sobre o que significa alguém, especificamente se for homem, abrir a boca para criticar quem fez plástica na vagina. Entender o que leva alguém a estabelecer se é feminista ‘raiz’ ou ‘nutella’ quem fala sobre o assunto sem pré-julgamentos e preconceitos.
Até porque, de verdade, gente, se a vagina não é sua, para que mesmo interessa se A, B ou C operou, cortou, esticou, lipoaspirou, rejuvenesceu, apertou, elasteceu?
Para ser justa, não são só os homens que não têm direito de criticar quem faz o que quiser e bem entender com a própria vagina. Mulheres não tem o direito de ditar regras e estabelecer normas sobre o corpo das coleguinhas.
Nem ranking, nem medalha
Ainda existem moças que não perceberam que o feminismo não se trata de estabelecer as suas normas para enquadrar as outras, tirando do clube as mulheres que alguém considera não serem dignas de pertencer ou carregar o título de feministas. Ainda tem mulher querendo determinar quem deve ou não ser considerada ‘mulher de verdade’. Leiam Simone de Beauvoir, revisar os clássicos sempre ajuda.
Não tem carteirinha. Não tem essa de raiz ou nutella. Não existe mulher de verdade ou de mentira. Tem inclusão. Não é para fazer ranking entre os muitos feminismos, é para ter respeito. Solidariedade entre mulheres que se unem pelos pontos em comum e se respeitam nas diferenças e apoiam as lutas umas das outras. Porque se eu não sei o que significa ser mulher trans, lésbica ou negra, tenho de dar um passo atrás e deixar as trans, lésbicas e negras serem protagonistas de suas lutas.
Por também ser mulher, dou o meu apoio, me solidarizo com a dor de quem tem uma realidade diferente da minha. Mas não estabeleço hierarquia entre minhas necessidades e as das outras mulheres. E nem digo que a bandeira que carrego é mais ou menos pesada ou importante, apenas tem diferenças. No dia em que todas as mulheres entenderem isso, o machismo estará ferrado de vez!
De boas intenções…
É preciso cuidado com as boas intenções e os infernos que elas trazem. Criticar algo que não se gosta, concorda ou faria é um direito. Mas desmerecer quem faz uma escolha diferente da nossa é desrespeito.
Da mesma forma, é desonestidade rotular de melhor ou pior feminista quem respeita a decisão alheia de operar a própria vagina. É desonesto porque padroniza e estimula a competição entre as mulheres. Uma mulher não pode ditar regras sobre os corpos e as vontades de outra, porque uma não é a outra. Para decidir, é preciso vestir a pele da colega no sentido literal e isso não existe. Eu visto meu corpo, você veste o seu.
Empatia é entender a dimensão da dor do outro, fazendo um exercício de se colocar no lugar da pessoa ferida, mas isso só é possível metaforicamente. Por mais empatia que se tenha, nunca seremos capazes de sentir exatamente o que o outro sente. Porque os corpos e os espíritos são diferentes. O bonito é compreender o outro mesmo na diferença.
A vagina no meio do debate
O problema com técnicas para rejuvenescer ou remodelar vaginas, para mim, não é a medicina, ou estética, em si, mas o conceito por trás da intervenção. O serviço foi criado em algum momento por existir demanda. Assim como ocorre em outras intervenções – como a lipoescultura, lifting facial, redução ou aumento de seios -, no caso das vaginas remodeladas, existe sim um certo modelo opressivo vendido como ‘a mulher ideal’. É preciso alimentar a indústria que existe à custa da nossa insatisfação.
O ponto é descobrir porque as insatisfações se tornam insatisfações. O desafio é expandir cada vez mais esse círculo que restringe a um determinado tipo de padrão, de corpo, de pele, de cabelo, de tamanho, e ir incluindo o máximo de gente. Até que um dia todo mundo entenda que a pluralidade é boa e as belezas são diferentes, nem melhores, nem piores.
Essa demanda foi gerada por quê? Por que tem mulheres que se sentem inseguras com seus corpos apontados e vigiados? Por que tem mulheres que se sentem humilhadas pelos parceiros que, quando elas envelhecem, costumam fazer comentários maldosos sobre o aspecto de suas vaginas, como se eles também não ficassem mais velhos e flácidos? Por que existe uma cultura secular que desmerece as vaginas, que odeia vaginas, que despreza, diz que são feias, que fedem, que estão largas de tanto transar? Por que existe um culto à juventude, que muitas vezes beira à pedofilia, que enaltece as ‘novinhas’? Por que existe um fetiche cruel de que quanto mais apertada for a mulher, mais o homem terá prazer, mesmo que durante o sexo ela sinta dor e incômodo? E como se o prazer dela não fosse tão importante quanto o dele? A resposta é sim para todas essas perguntas acima e para outras que não couberam aqui.
Existe uma lógica perversa por trás dos ideais de beleza e sensualidade femininas? Existe. Mas existe também um discurso que se pretende em defesa das mulheres, mas no fundo, é só mais uma caixa que tenta nos aprisionar, etiquetar e desconhecer nosso direito mais básico e humano de decidir ‘sem ser julgadas’ o destino de nossos próprios corpos, vontades, sexualidade…
Sem falar, também, no tanto de homem por aí que se acha no direito de nos explicar o que são os movimentos feministas e como uma feminista deve ser ou se comportar. Sério, rapazes? Vocês querem mesmo explicar para as mulheres como é ser mulher e lutar por direitos e reconhecimento em um mundo ainda dominado por homens?
Sim, e daí?
A conclusão desta longa reflexão é bem simples: a mulher que decide se submeter a uma intervenção na vagina ou em outra parte do próprio corpo por estética, e não por necessidade da saúde do órgão, tem seus motivos e só ela sabe quais são ou porque cederá a eles.
Pode questionar se é por ela mesma que faz a cirurgia, se para favorecer a própria autoestima, ou se vai encarar o risco de um procedimento invasivo e um processo de recuperação, às vezes incômodo, só para agradar alguém ou obedecer aos padrões da sociedade? Até pode. Mas pode, e deve, principalmente e sempre, respeitar a decisão que ela tomar, porque só ela sabe o que carrega no corpo.
Às vezes, dá aquela vontade de ter varinha de condão e sair por aí fazendo abracadabra e botando juízo e bom senso na cabeça de quem a gente acha que está precisando. Mas, se as pessoas tivessem esse poder, já imaginaram como o mundo seria assustador?
Sejamos mais educadores e aprendizes uns dos outros enquanto pessoas. E menos juízes e algozes de quem pensa ou age diferente de nós. Nem toda mulher que faz plástica em qualquer parte do corpo tem a autoestima baixa ou é teleguiada. A lógica perversa existe, as demandas sugeridas também, tem muita gente que ainda se ilude ou deixa abalar por críticas negativas e por pressões de companheiros, é verdade.
Mas é preciso reconhecer e respeitar a liberdade de cada pessoa, principalmente de cada mulher, fazer o que deseja com o próprio corpo e a própria vida. Desde que nossas decisões individuais digam respeito apenas a nós mesmas e não prejudiquem aos outros, ninguém tem direito de interferir, mesmo com ‘boas intenções’.
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