Resenha: O demônio do meio-dia

Nomear o mal para assim, conhecendo-o, poder lutar contra ele. O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão, de Andrew Solomon (Companhia das Letras, 2014), não só batiza, como faz a autópsia de um dos males mais cruéis e, ainda hoje, incompreendidos, embora a notificação de casos venha aumentando no rastro da busca cada vez maior por esclarecimento sobre os transtornos depressivos. 

O livro, lançado em 2001 e publicado no Brasil em 2014, com um epílogo exclusivo para a edição brasileira ,onde o autor atualiza alguns fatos da edição original, contribui significativamente para diminuir o estigma sobre a doença. Mérito, aliás, do excelente trabalho de reportagem do autor, que é também um paciente em tratamento, com histórico de pelo menos três grandes surtos depressivos, como ele mesmo descreve. 

Mas, o livro vai além de um relato pessoal ou de uma pesquisa aprofundada e desenvolve no leitor que não conhece o assunto na carne, a empatia por quem luta para não ser devorado por esse ‘demônio’. Me senti tocada e muito próxima das pessoas que sofrem da doença. Ao menos, mais capaz de compreendê-las.

Esclarecedor, sensível, rico em detalhes e extremamente didático, o que ajuda bastante como introdução ao tema para quem é leigo no assunto, a obra traz ainda muitos relatos de pacientes, com seus dramas e histórias de vida, bem como as tentativas de vencer a depressão. 

O livro é denso e recheado de informações. Exige atenção na leitura, oferece quase 100 páginas só com notas explicativas, mas ainda assim é uma leitura agradável, sem academicismos, que dialoga com o leitor comum e descortina para ele um tema espinhoso, sem simplificar demais e sem complicar só por puro pedantismo.

Vale destacar as análises bastante lúcidas do autor sobre a atuação da indústria farmacêutica no tratamento da doença e do quanto, se por um lado, doentes de depressão precisam muito dos remédios para lutar contra o mal; por outro, existe uma tendência meio irresponsável de certas áreas da medicina em banalizar a prescrição de antidepressivos para quem não necessariamente precisa dessas drogas.

Solomon também passa em revista as psicoterapias, mostrando o quanto tomar coquetéis de remédios sem ter um acompanhamento psiquiátrico adequado é ineficaz para evitar recaídas. Do mesmo jeito que apenas fazer terapia sem o uso dos fármacos, para muitos doentes, não surte efeito e agrava os episódios da doença.

Os problemas da mente, como Andrew Solomon diz tão bem, ainda acarretam preconceito e falar do assunto é tabu, daí ele afirmar que “a depressão é uma doença solitária”. Por medo, por desconhecimento, por indiferença, a depressão ainda não recebe a atenção e cuidados compatíveis com o impacto que provoca não só na vida dos doentes, mas na de todos ao redor dele e na própria sociedade, em termos, por exemplo, da produtividade, criatividade e participação laboral e social dos afetados.

A depressão estigmatiza e enche os doentes de culpa. Pessoas com depressão acumulam quantidades impensáveis para quem não sofre da doença de sofrimento psíquico justamente por tornarem-se incapazes de ser elas mesmas e de produzir como fariam se não estivessem doentes. 

Se enchem de tristeza ainda maior porque têm consciência do quanto suas famílias sofrem. E Solomon ilustra o quanto a doença é cruel ao trazer para o leitor de O demônio do meio-dia as inúmeras histórias de depressivos e de suas batalhas contra a doença incapacitante. Principalmente de mães depressivas que acabaram arrastando os filhos para esse mesmo poço, criando um ciclo difícil de quebrar.

Por outro lado, ele também faz um alerta para as famílias sobre a forma correta de acolher e amparar seus membros acometidos pelo problema. Segundo o autor, fingir que não está acontecendo nada, mantendo o demônio trancado no armário não faz com que ele desapareça ou diminui os estragos que é capaz de causar.

De forma bastante franca, o autor toca ainda no maior dos tabus dentro do espectro da depressão, o suicídio. E faz isso expondo a própria tentativa de se matar e contando as experiências de outros entrevistados. As histórias das pessoas entrevistadas pelo escritor, inclusive, são comoventes e dramáticas, mas o autor, até por viver a realidade da doença, não explora os dramas de suas fontes de forma banal, nem mesmo quando aborda a sombra do suicídio.

Andrew Solomon (Foto: Divulgação)

Ao contrário, ele dá voz a um grupo invisível e, em até certa medida, marginalizado e desumanizado por tratamentos que ao invés de buscar o modo peculiar como a doença mental se manifesta de pessoa para pessoa, homogeniza todos os pacientes em um amálgama sem contornos. 

Se o doente depressivo já é estigmatizado, o doente depressivo que tentou se matar representa quase uma mácula indesejada para uma sociedade que não admite a existência sequer das pequenas tristezas cotidianas, que dirá de um abismo que oferece a morte como solução final.

Considerado um dos melhores tratados sobre o tema não escritos por psiquiatras, O demônio do meio-dia deriva de artigos que Andrew Solomon escreveu ao longo da década de 1990 para a revista New Yorker. O livro foi finalista do Prêmio Pulitzer, em 2002, e também recebeu homenagens como a do National Book Award, em 2001. 

Todo esse reconhecimento, bastante merecido ressalte-se, não é nada comparado às histórias de gratidão – que chegam a ele por meio de cartas – que o autor compartilha no epílogo brasileiro. Com sua sinceridade profunda e a coragem de expor a própria vida, Andrew Solomon transformou seu reconhecido best-seller em uma pequena luz na escuridão que, se não tem a dádiva de oferecer cura, tem ao menos o consolo de ajudar os depressivos a apaziguar o monstro que os assombra…

Um trecho do livro:

“Essa triste reunião para compartilhar a dor era um momento singular de libertação para muitas pessoas presentes. Lembrei dos meus piores momentos, daqueles rostos ansiosos e inquiridores, do meu pai dizendo: ‘Está se sentindo melhor?’, e do quanto me sentia desapontado ao dizer: ‘Não, na verdade não”. Alguns amigos tinham sido ótimos, mas, com outros, senti a necessidade de ser mais cuidadoso. E de fazer piadas. ‘Adoraria vir, mas estou no meio de uma crise nervosa, será que não podemos combinar outra hora?’ É fácil guardar segredos sendo sincero num tom de voz irônico. Aquela sensação elementar no grupo de apoio – eu trouxe minha consciência hoje, e você? – dizia muita coisa e, quase sem perceber, comecei a relaxar naqueles momentos. Muito não pode ser dito durante a depressão, só pode ser intuído por aqueles que conhecem. ‘Se eu estivesse de muletas, eles não me pediriam para dançar’, disse uma mulher a respeito dos esforços incansáveis de sua família para que ela fosse se divertir. Há tanta dor no mundo, e a maioria das pessoas guarda as suas em segredo, rodando por vidas de agonia em cadeiras de rodas invisíveis, dentro de um gesso ortopédico invisível cobrindo todo o corpo. Nós apoiávamos uns aos outros com o que dizíamos. Certa noite, Sue, agoniada, as lágrimas escorrendo pelo rímel pesado, disse: ‘Preciso saber se algum de vocês já se sentiu assim e sobreviveu. Alguém me diga isso, vim até aqui para ouvi-lo, é verdade, por favor, digam-me que é’. Outra noite alguém disse: ‘Minha alma dói tanto; preciso ter contato com outras pessoas'”.

(O demônio do meio-dia – Uma anatomia da depressão, Andrew Solomon, Companhia das Letras, 2014, pág. 155).

Ficha Técnica:

O demônio do meio-dia – uma anatomia da depressão

Autor: Andrew Solomon

Tradução: Myriam Campello

Editora: Companhia das Letras

584 páginas

*R$ 29,90 (e-book) e a partir de 64,90 (livro em papel, capa comum)

*Pesquisado em 30/07/2019 na Amazon

 

*Texto originalmente publicado no Mar de Histórias e na rede de bibliófilos Skoob.

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Cronicamente (In)viável: Parem ‘1984’ que eu quero descer…

‘1984’ já foi levado ao cinema duas vezes, por Michael Anderson, em 1956, e por Michael Radford, em 1984. A imagem é da versão dos anos 1980 e mostra o ator John Hurt, que vive Winston, o protagonista da história

O mundo respira ares de Idade Média e o obscurantismo domina o que antes era busca por conhecimento. No Brasil, nas universidades federais, bolsas de pesquisa são cortadas porque a prioridade do atual governo não é a educação, o avanço da ciência ou o estímulo ao pensamento crítico e criativo que fazem as sociedades evoluírem. Cortes na educação infantil tiram, literalmente, a merenda da boca de estudantes pobres. Crianças que, muitas vezes, tinham a refeição da escola como a única do dia. As ciências humanas são execradas, como se a matemática, a física e a química não tivessem também suas origens na capacidade humana de questionar, investigar e experimentar.

Nesse mundo medieval do século XXI, livros didáticos devem ser reescritos porque a história é a mãe da memória e a memória é o impulso que nos torna humanos, críticos, questionadores e capazes de fazer escolhas sensatas. Então, para nos apagar enquanto indivíduos e assim minar as somas que fortalecem as comunidades e suas justas lutas por reconhecimento e respeito, é preciso agir como o ‘Ministério da Verdade’ criado por George Orwell no livro ‘1984’, e distorcer os fatos, fazer a mentira mais deslavada e sem lógica vestir o manto da verdade, que nua, busca abrigo na voz dos poucos humanos de bom senso que ainda restam.

Esse povo que atualmente nos governa detesta o conhecimento, acha inteligência algum tipo de doença e intelectuais seres altamente perigosos e ofensivos. Tanto que preferem dar ouvidos a criaturas perversas que usam o dom da palavra para alienar e não para educar. Gente que prefere jogar as discussões mais sérias no ringue rasteiro dos xingamentos gratuitos, criando polêmicas esdrúxulas que só afundam o país numa lama podre. E há quem aplauda esse circo e coloque caminhões de lenha nessa fogueira.

Gente mesquinha, preconceituosa e tacanha que dissemina na internet boatos infundados sobre vacinas, ressuscita equívocos há muito esclarecidos sobre o formato do planeta e sobre a evolução das espécies, desmerecendo milênios de estudos, pesquisas, observações e esforço intelectual. Porque tudo o que a humanidade é, deve aos indivíduos que, geração após geração, não aceitaram apenas o que seus olhos mostravam e foram em busca de entender as origens e os porquês da vida.

Essas criaturas abissais dessa idade das trevas em que, infelizmente, fomos jogados pelo desvario e os preconceitos de milhões de brasileiros que transformaram seus títulos de eleitor em pistolas calibre .44, servem de ‘gurus’ do apocalipse, perdidos em delírios, seitas e visões do inferno alimentadas por uma pudicícia forjada em desejos recalcados e muita hipocrisia. São seres malignos, que sofrem de deformidades da alma que mil encarnações ainda são poucas para reabilitar.

Nesse mundo de 2019 que parece saído de uma ficção científica distópica, teorias da conspiração substituem o que antes era fato histórico ou constatação científica. Pais e mães desinformados por grupos mal-intencionados de Whatsapp, incapazes de refletir e enxergar para além de suas bolhas, arriscam as vidas de suas crianças e epidemias antes praticamente extintas, renascem com o poder de mutação de vírus cada vez mais letais. Enquanto isso, médicos sanitaristas, cientistas e pesquisadores têm seus alertas desacreditados por correntes de grupos que reúnem desesperados e também os perversos que só querem criar o caos e assistir a miséria se espalhando.

Com os humanos regredindo na mesma proporção em que consomem as últimas reservas do planeta, a religião, nas suas formas mais preconceituosas, ditam muito ódio ao invés de pregar o amor, o respeito e a tolerância que, em tese, deveriam inspirar quem tanto apregoa estar imbuído de fé. Em nome de Deus não só se mata, como também e, principalmente, se aliena os indivíduos.

Por que 1984?

O livro de George Orwell é de 1949. O escritor criou uma fábula ambientada no distante futuro de 1984 (em comparação a 1949), quando os seres humanos viveriam em uma ditadura global, comandada pelo Grande Irmão (Big Brother), sem liberdades individuais ou direitos civis. O livro começa com o mundo dividido unicamente em três super países que se agruparam após uma guerra catastrófica. Esses super países ora brigam entre si, ora se aliam na proporção de dois contra um, ora se fundem como um único império. A inspiração de Orwell é o contexto da Europa após a II Guerra Mundial. Antes do conflito, porém, a Europa foi varrida por uma onda de ultranacionalismo, conservadorismo e autoritarismo. Nos últimos anos, a onda nazi-fascista vem se erguendo de novo e não só no ‘Velho Mundo’.

>>Leia resenha comparativa entre 1984 e Admirável Mundo Novo

Tenho me sentido dentro das páginas de ‘1984’ cada vez que abro o noticiário do dia e não paro de comparar a história do livro com a realidade atual do Brasil e do mundo. Às vezes, as semelhanças são tantas que até assustam.

No Ministério da Verdade, funcionários treinados para obedecer sem questionar são encarregados de reescrever a história do mundo de acordo com as conveniências de quem exerce o poder no momento ou de acordo com os jogos de guerra dos três super países da história. Se a gente pensa nas redes sociais de agora e no compartilhamento de notícias falsas, ou seja, de mentiras vestidas de notícia, e na forma ignorante como as pessoas afirmam essas mentiras como se elas fossem a mais cristalina verdade, a sensação é de que o planeta virou uma das seções do ministério de Orwell.

Em ‘1984’ também somos apresentados ao Ministério do Amor, que existe para torturar física e psicologicamente os indivíduos que não se ajustam ao comando do Grande Irmão. O Ministério do Amor usa a força bruta, quebra o corpo para quebrar o espírito, tal qual a polícia ou as milícias de agora. Cada vez que vejo comentários nas redes sociais de gente pedindo pena de morte ou desejando ter porte de arma, também sinto como se os torturadores desse ministério tivessem escapado das páginas do livro.

Para exercer o controle social dos cidadãos em ‘1984’ há a vigilância das teletelas, aparelhos instalados nas casas que se assemelham a uma televisão e que, além de só passar a programação permitida pelo Grande Irmão, também filma o dia a dia das pessoas e envia os dados para o alto comando. Não existe privacidade no mundo futurista imaginado por George Orwell. Também não existe mais privacidade com a inteligência artificial em smartphones e eletrodomésticos. E a tendência é piorar, até porque, toda uma geração nasceu com as redes sociais borrando as fronteiras entre vida pública e privada.

Mas, o que mais aproxima ‘1984’ do contexto político e social do Brasil e do mundo atual, para mim, é o ‘Dia do Ódio’, um evento que o Grande Irmão promove para que os cidadãos subjugados, humilhados, frustrados e vigiados possam exercitar a violência em sua forma mais primária e brutal. Nesse dia, as pessoas são estimuladas a gritar e dizer ofensas impublicáveis e a machucar umas às outras sem culpa. Mas, obviamente, elas não se voltam contra o Grande Irmão, mas contra vizinhos e contra, claro, o inimigo oculto, o outro, o estrangeiro representado no livro pelos moradores dos outros dois super países.

A crise migratória global e toda a raiva e xenofobia que levam, por exemplo, a atentados como os ocorridos este ano na Nova Zelândia ou no Sri Lanka dão uma ideia do que seria ‘O Dia do Ódio’ da vida real. Os xingamentos e o desprezo, que muitas vezes culmina também em agressão física, de moradores do sul e do sudeste do Brasil contra nortistas e nordestinos também ilustra bem o quanto um governo que legitima o preconceito se assemelha com o Grande Irmão do livro.

E o que fazer para sair desse looping?

O final de ‘1984’ é trágico e pessimista como reza a cartilha das distopias que George Orwell e outros autores anteriores, contemporâneos e que vieram depois dele ajudaram a consolidar e que Black Mirror apresentou à geração Z. Mas, em 2019, resistir é o único recurso para sobreviver à onda de obscurantismo e conservadorismo que ameaça afogar o mundo. E resistir significa muitas coisas, desde ir para a rua protestar até ler e analisar criticamente as informações que chegam. Mesmo com os seres abissais que por agora governam o Brasil querendo nos tirar o direito à educação, é preciso apostar no conhecimento como a única arma que realmente pode nos salvar das trevas.

*Publicado originalmente em mardehistorias.wordpress.com

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Cronicamente (In)viável: Velhinhos ativos e cansados, mas com energia de sobra…ou quase

Chronos, o senhor do tempo

Me entendo por velha antes mesmo de saber-me gente. Criada por mãe e avó com grandes diferenças de idade, a velhice não me assusta por sua existência, mas pelas ausências que ela comporta. Tenho medo de ficar sem memória e de passar a depender dos outros e me agarro a vã esperança de que serei uma idosa independente, estampada de flores e calçada em tênis confortáveis.

Converso com um amigo, um ou dois anos mais novo que eu. Refletimos sobre o que é ser uma pessoa de quarenta e poucos anos no século XXI e o que era ter essa idade algumas décadas atrás. Em geral, não nos sentimos abatidos ou sisudos como eram os quarentões do tempo de nossos avós, embora os amigos de nossos filhos nos chamem de ‘tio’ e ‘tia’. Ao mesmo tempo, sabemos que não somos mais novinhos. “Vivemos uma espécie de maturidade cheia de energia”, filosofa o meu amigo, convencido de que estamos em plena forma.

Outro conhecido, de 54 anos, me confessa que na própria cabeça, ele se imagina com 18. “Mas um cara de 18 responsável!”, enfatiza. Já eu, tem dias que me sinto com 90. A verdade é que, de vez em quando, percebo que me falta energia. Alguns dias mais, outros menos, os quase 45 anos – daqui há 22 dias – pesam e me recordam que os joelhos já não são tão flexíveis. A coluna também cobra a postura torta de uma vida.

Jovens para sempre

Tenho percebido que aquele vigor intenso vendido nos comerciais de Vitamina C anda escasso entre as pessoas da minha geração e até entre as mais jovens, como se elas já nascessem cansadas e precisassem de um banquinho para descansar cada vez mais cedo. Outra amiga, essa com 30, me confidenciou que, ultimamente, só vai em eventos onde tenha lugar para sentar. Ri alto dessa velhinha precoce e lembrei que eu mesma me sinto idosa desde criança.

A sensação de que o tempo passa cada vez mais depressa é real para vários conhecidos. Acordo e a lista de afazeres não cabe no dia. As pausas necessárias para recarregar as baterias são cada vez mais necessárias e escassas. Abrir um tempo para não fazer nada é praticamente recomendação médica para pessoas que andam estressadas, super atarefadas e sentindo-se cansadas quando a velhice ainda nem apontou na esquina da vida.

E as soluções para combater o cansaço são igualmente cansativas, porque o mundo contemporâneo não permite que o tempo da pausa seja apenas para ficar sem fazer nada. É preciso encher a existência com atividades. O que se entende por descanso é só a troca de um cansaço por obrigação, por um cansaço lúdico. Descansamos do trabalho e das demandas obrigatórias em atividades de lazer cada vez mais barulhentas e menos contemplativas.

Ao mesmo tempo, a ideia atualmente em voga para a velhice é a da hiperatividade. Como a expectativa de vida aumentou muito desde que uma pessoa era considerada anciã aos 40 anos, cada vez mais é preciso incutir na humanidade a certeza de uma maturidade cheia de afazeres e disposição.

Comerciais de TV, personagens de ficção, coaches, personal treinares, artistas, etc. vendem a velhice que se disfarça de juventude eterna e, com isso, acredito que existe um lado negativo, que nos faz perder a dimensão de que envelhecer, se por lado traz conhecimentos e experiências acumuladas, por outro significa fragilidade e necessidade de cuidados. E não tem nada de errado em tornar-se frágil depois da vida inteira gastando reservas de força.

Se tem muitos idosos que naturalmente mantém-se ativos e produtivos até depois dos 80 anos, existe também um contingente enorme que se debilita muito mais rápido. E isso vai depender de diversos fatores da vida de cada um.

A meta é ter autonomia, lucidez e independência pelo máximo de tempo possível, mas isso não significa que a existência da velhice deva ser negada e escondida; ou que as palavras ‘velha’ e ‘velho’ sirvam apenas para definir coisas imprestáveis ou ultrapassadas. O tempo é velho, no sentido de infinito, e dele ninguém diz que é imprestável.

A velhice é um estágio da vida. Sempre me recordo de minha mãe dizer que se a gente não morre jovem, envelhece. E ninguém – ou quase ninguém – quer morrer jovem, porque a gente se apega demais à vida. Por mais complexa que ela seja, queremos esticá-la o quanto der.

Com a velhice se instalando – ao menos na teoria – cada vez mais tarde e, consequentemente, a infância, adolescência e juventude se prolongando em ciclos que ultrapassam os 30 anos, cobramos dos mais velhos que mantenham-se eternamente bem dispostos, desrespeitando, muitas vezes, seus ciclos naturais.

O preço do tempo

Tem uma hora que as pessoas vão mesmo envelhecer, que não vai ter plástica, Pilates, suplemento ou meditação que dê jeito. O tempo só avança e nosso corpo, essa máquina que muitas vezes é bem castigada, se desgasta com o uso. Então, é preciso aceitar as limitações da idade sem se sentir um fracasso.

Acredito que meu temor em depender dos outros com o passar dos anos se explica por essa ameaça de termos um mundo cada vez mais povoado por adultos infantilizados e incapazes de aceitar e compreender a velhice e seus limites. Ou mantemos a independência ou teremos de depender de pessoas imaturas e desprovidas de empatia para com as necessidades de uma humanidade cada vez mais velha e, consequentemente, frágil.

O cansaço crônico sentido por gente com até metade da minha idade também pode ser um fenômeno atrelado justamente a essa ideia de velhice hiperativa, que na verdade começa ainda na infância. É tanto estímulo recebido diariamente, nas redes sociais, nas ruas, na escola, no trabalho, no shopping center, etc.; e tanta cobrança para sermos eternamente vigorosos e atuantes – e bem dispostos e lúcidos e ágeis e habilidosos e bonitos e atraentes -, que simplesmente queimamos a pilha mais depressa do que antigamente.

E haja combustível para suprir tanta demanda por movimento!

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*Também publicado no blog Mar de Histórias

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Cronicamente (In)viável: Não fale mal dos gatos perto de mim…e nem fale se estiver longe

Gatos são criaturinhas geniais (Foto: Andreia Santana)

Meu filho costuma dizer que não confia em quem não gosta de gatos. E tem lógica, já que os gatos são animais extremamente sensíveis e que não confiam em qualquer um. Uma amiga, também gateira, afirma que os gatos sabem quando alguém é do bem ou não; e que gente do bem sempre cai nas graças dos felinos.

Não significa que a regra seja universal. A história está aí para provar que muitos ditadores bem maldosos com o povo, amavam seu gatos. Digamos que existe uma tendência de gente bacana atrair essas criaturinhas geniais, mas que gente não tão bacana assim também pode receber sua cota diária de amor felino.

Não lembro onde li – acho que foi minha irmã, gateira de carteirinha desde criança, quem disse – que as pessoas que não gostam de gatos é porque não os conhecem e reproduzem preconceitos do senso comum; ou seja, nunca conviveram com eles e apenas repetem de ‘ouvir falar’.

O que eu sei é que gatos são terapêuticos, amorosos e engraçados. Os gatos da minha família – são cinco, duas irmãs e uma delas, mãe de três – alegram os dias em casa; fazem massagem para espantar o estresse (já acordei várias vezes sendo massageada no plexo solar); ronronam quando alguém da família está doente ou triste; e fazem ‘cambalhota do amor’ (quando os gatos rolam no chão para os seus humanos) e ‘fofinho’ (que alguns gateiros chamam de ‘amassar pãozinho’).

Também nos esperam chegar em casa, nos chamam para brincar e sabem inclusive indicar que brinquedo eles querem que pegue. Geralmente algum cadarço ou pedaço de tecido velhinho com badulaques amarrados nas pontas já os deixam bem felizes. São ainda extremamente curiosos e ‘novidadeiros’, qualquer caixa, pacote ou embrulho rendem mil explorações.

Assim, como acontece com as pessoas, cada um dos cinco gatos da minha família tem uma personalidade diferente e interage com os humanos da casa de uma forma específica. Tem os mais dengosos, os mais reclamões, os meio blazé, os mais obedientes e aqueles bem teimosos. Mas todos sabem expressar um tipo de amor genuíno que nem sempre se encontra nos seres humanos.

‘Essas ideias que você pensa ter tido…’

Não gostar de gatos é compreensível. Assim como é compreensível não gostar de cachorros, de crianças, de sorvete, etc. O que não dá para entender é o tanto de informação equivocada que as pessoas ainda repetem sobre os gatos como se fossem verdades universais e, na maioria das vezes, porque elas ouviram essas mentiras e saíram espalhando o equívoco como se fossem pérolas de sabedoria.

Dia desses, um conhecido me disse que não gostava de gatos porque “gatos são interesseiros e só são carinhosos com os donos para ganhar comida”. É uma variante da frase que ouvi muito na infância, inclusive da boca de pessoas próximas: “que os gatos só gostam da casa e não do dono”.

São frases repetidas a gerações, mas que não fazem o menor sentido. São mentiras moldadas por preconceito. Os gatos gostam sim dos donos, da casa e de conforto. Como qualquer outra animal, inclusive o humano, o gato responde ao ambiente externo, se é bem tratado, retribui, se é maltratado, se retrai, vai embora.

Talvez a cisma de muita gente com os gatos seja justamente porque eles conseguem, mesmo que magoados, seguir em frente. São animais muito dignos. Observe um gato de rua, por mais maltratado e esfarrapado que o bichinho esteja, existe uma aura de honra, de orgulho e de resiliência nele.

Gatos não são submissos, são amorosos. Mas muitos humanos confundem amor e demonstrações de carinho com submissão e por isso, não aceitam um animal altivo e que não se rende. É preciso demonizar esse animal ‘rebelde’ que não faz o que mandam.

Da mesma forma que é preciso queimar na fogueira as mulheres rebeldes, as pessoas questionadoras, livres e insubmissas. Muita gente confunde amor com posse e por isso rejeitam as criaturas que não aceitam ser propriedade…

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*Também publicado no blog Mar de Histórias

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Dica de série: Grace and Frankie

Os quatro protagonistas de Grace and Frankie: Martin Sheen, Jane Fonda, Lily Tomlin e Sam Waterson

A Netflix estreou no último dia 18 a quinta temporada da série Grace and Frankie, de Marta Kauffman, a mesma criadora da badalada Friends. A série, protagonizada por Jane Fonda e Lily Tomlin, conta a história de duas mulheres que, na terceira idade e depois de mais de 40 anos de casadas, descobrem que os maridos das duas, Sol e Robert, (vividos, respectivamente, por Sam Waterston e Martin Sheen), sócios em um escritório de advogacia, são gays e amantes há 20 anos. Os dois decidem sair do armário, pedem o divórcio e se casam um com o outro. Grace, uma sofisticada empresária do ramo de cosméticos acaba indo morar com Frankie, uma artista plástica hippie, ativista e deliciosamente ‘porra loca’…

Vou deixar a sinopse só até aí, para não entregar spoiler a quem nunca assistiu. E, se você faz parte do grupo que não viu ainda essa belezura e passou batida pela série no catálogo da rede de streaming, não perca mais tempo e agarre a chance de assistir uma das coisas mais divertidas e interessantes dos últimos tempos.

Os episódios, são 13 por temporada, são curtinhos, de menos de 30 minutos, ideais para maratonar e de bônus, lavar a alma. Um incentivo extra: nem bem a quinta temporada estreou, a Netflix já confirmou a sexta para 2020. E acredite, a cada episódio que termina, a gente sente saudade das personagens e quer mais.

O elenco é maravilhoso. Além de Jane Fonda, Lily Tomlin, Sam Waterson e Martin Sheen que estão magníficos nos papeis principais, os atores e atrizes que vivem os quatro filhos deles são fantásticos, com destaque especial para June Diane Raphael, que interpreta Brianna, a sarcástica filha mais velha de Grace e Robert.

Completam o grupo de filhos e filhas: Brooklin Decker, a romântica Mallory, caçula de Grace e Robert; Ethan Embry (Coyote) e Baron Vaughn (Nwabudike, chamado de ‘Bud’), os dois filhos adotivos de Frankie e Sol. O primeiro é um carismático dependente químico em tratamento, e o segundo, um sisudo e meio neurótico advogado.

Grace e Frankie tem personalidades bem diferentes, mas encontram o caminho de uma sólida amizade

Boa para espairecer e pensar

Grace and Frankie é cheia de vigor, refresca a cabeça, alimenta o espírito e de quebra nos coloca para pensar em várias questões que ainda são tabu, como a sexualidade na terceira idade e a ideia machista de que mulheres não podem ser amigas porque são rivais.

Grace e Frankie são senhoras beirando os 80, que têm vida social e sexual ativa, são despachadas, desbocadas, independentes e livres como só pessoas bem resolvidas conseguem ser.  As duas conviveram socialmente por décadas, porque os maridos eram sócios, mas não tinham uma amizade profunda. Com personalidades bem diferentes, são unidas inicialmente a contragosto, depois dos conturbados divórcios que enfrentam. Mas, aos poucos, descobrem uma na outra a inspiração para superar a crise e transformam-se em amigas-irmãs. Ver a construção da amizade e da cumplicidade das duas já vale a série.

Elas também enfrentam dilemas e questões ligadas ao envelhecimento, à forma como a sociedade trata as pessoas idosas – principalmente as mulheres -, com exigências em termos de comportamento. Cansadas das convenções, chutam o pau da barraca e não estão nem aí para o que é socialmente adequado na faixa etária delas. Querem mais é zerar a vida que lhes resta da forma mais intensa possível. São inspiradoras!

Sol e Robert. A química entre Sam Waterson e Martin Sheen é muito boa

O casal formado por Sam Waterston e Martin Sheen também quebra outros tabus como o do envelhecimento das pessoas LGBT+. Os dois vivem os dilemas de todo casal, com o adendo da surpresa e do encantamento pelas descobertas do universo gay, pois se reprimiram a vida toda e só tomaram coragem de sair do armário na terceira idade. Ou seja, naquele momento que entendemos como um dos mais frágeis da vida, eles enfrentam as ex-mulheres, os filhos, os clientes e as dificuldades do cotidiano.

Embora no começo a gente fique com a pulga atrás da orelha porque eles enganaram as duas mulheres por 20 anos, logo percebemos que a questão é muito mais profunda. Começamos a enxergar Sol e Robert pelos olhos de Grace e de Frankie e vivemos cada estágio do processo delas desde a descoberta, a revolta, a negação e a aceitação, até a compreensão da situação vivida pelos ex-maridos. É bacana ver como elas conseguem desconstruir o machismo de Robert, o que o ajuda também na autoaceitação enquanto homem gay.

Não se trata de compreensão compassiva, do tipo que sempre se espera que as mulheres tenham com os homens. E nem tampouco é caso de ‘passar pano para macho escroto’. A traição existiu e eles são cobrados por isso, mas existem diversas camadas nos relacionamentos prévios de Grace e Robert e no de Sol e Frankie que tornam possível para elas – e para as espectadoras – superar a traição dos ex e estabelecer novos laços.

Trata-se de uma forma de compreensão genuína, que nasce da empatia e de uma amizade construída ao longo dos relacionamentos de mais de 40 anos que os dois ex-casais tiveram. E nada é gratuito ou maravilhosamente resolvido do dia para a noite. O roteiro de Kauffman respeita, com competência, o fato da sexualidade humana não ser algo óbvio e rasteiro, que se decifra em um passe de mágica.

Quebra de paradigma

Os quatro idosos protagonistas – e já é uma quebra de paradigma uma série com o elenco principal todo na terceira idade – são pessoas querendo manter sua liberdade e independência em um mundo que é averso ao envelhecimento e que costuma tratar os mais velhos como incapazes, mesmo quando são ativos e perfeitamente donos de si.

Grace e Frankie chutam o balde e mostram o poder da maturidade

A série mostra também que, embora a chegada da velhice nesse mundo que cultua a juventude eterna seja cruel para homens e mulheres, existem hierarquias no tratamento que a sociedade dispensa a eles e a elas quando estão envelhecendo. Enquanto os homens são vistos como ‘distintos cidadãos experientes e sábios’; as mulheres acabam sendo tratadas com condescendência. Qualquer ato feminino em direção à liberdade e ao empoderamento na terceira idade é visto, de início, como ‘birra de velhinhas que estão ficando esclerosadas’.

Apesar das dificuldades que aparecem com a idade, como a adaptação mais lenta ao mundo hipertecnológico e as limitações físicas e de saúde, Grace e Frankie mostram sua força justamente ao abraçar suas limitações e aceitar o envelhecimento como mais um trecho da jornada pela vida. As duas sabem que já viveram bastante e que a longevidade tem um preço, mas não significa que seja hora de sentar em frente à lareira para fazer tricô.

Terceira idade com leveza

A velhice mostrada na série é abordada de forma leve, pois trata-se de uma comédia dramática que não pesa muito nas tintas do drama. Embora o programa questione várias coisas que atingem boa parte dos idosos, a opção é sempre fazer isso pelo viés do humor.

Nem todo mundo que assistir Grace e Frankie vai se identificar ou encontrar correlações imediatas com idosos do seu convívio. A história trata da realidade de idosos de boa condição financeira, norte-americanos e que não sofrem, por exemplo, de doenças demenciais. Mas existem questões do envelhecimento que são universais e fazem parte da cultura da sociedade ocidental e isso é o suficiente no programa para cativar a atenção.

Além disso, a série também não deixa de abordar problemas como o Mal de Alzheimer, a iminência da morte e o confinamento de idosos perfeitamente capazes em asilos, mesmo quando as famílias têm condições de criar outra estrutura para atendê-los.

Provavelmente, quem tem uma mentalidade mais conservadora e não pretende mudar essa visão, não vai gostar tanto assim quanto quem tem a cabeça mais aberta para a diversidade, porque a proposta é bem libertária e o máximo possível focada em desconstruir preconceitos. Os próprios personagens aprendem uns com os outros e com os próprios erros, pois Grace e Frankie também provam que nunca é tarde para evoluir.

Assista ao trailer oficial da série (legendado)

*Também publicado no blog Mar de Histórias

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*Cronicamente (In)viável: “Ah, mas as mulheres também…”

“Ah, mas as mulheres também…” Leio essa frase com frequência na internet, em reportagens de sites diversos, em redes sociais ou toda vez que uma conhecida posta críticas ou cobranças direcionadas aos homens. Geralmente, é outro homem que vai lá na caixinha de comentários e começa com “Ah, mas as mulheres também (fazem isso ou aquilo, são assim ou assadas, etc.)”

Me dá impaciência porque é uma estratégia que ainda engana muita gente. Mas, felizmente, cada vez menos mulheres caem nessa tentativa de desviar o foco da discussão. Tirar a atenção dos próprios erros apontando os defeitos alheios não é sinônimo de esperteza, é só imaturidade mesmo.

Homens, com exceções, claro, mas em geral, não gostam de ser criticados e não são muito dados a autoanálise, que dirá autocrítica. Basta alguém, principalmente se for mulher, apontar o dedo para um erro deles, uma atitude que não é bacana – tipo o machismo, que é uma estrutura de poder criada e mantida por e em benefício de determinados homens, de determinado padrão -, e eles já se ressentem, se doem, e buscam formas de desqualificar a queixa: “Ah, mas as mulheres também… blá blá blá”.

A gente sabe, rapazes. Sabemos que também existem mulheres que reproduzem a educação machista que receberam, que existem mulheres que por conta dessa educação equivocada, aprendem até a ser nocivas com outras mulheres. A gente sabe que a educação de meninas e de meninos precisa ser melhorada anos luz para se alcançar a tão sonhada igualdade de direitos. Temos noção de que mães educadas longe do machismo educam filhos solidários e que não vão reproduzir o machismo ad eternum como se fosse norma. A gente sabe de tudo isso e não estamos passando a mão na cabeça de nenhuma mulher.

E sua parcela de responsabilidade?

Mas o foco da queixa está em vocês, nos maiores beneficiários da estrutura machista da sociedade. A queixa está nos pais que deveriam fazer a parte deles na educação dos filhos e filhas. A queixa está nos maridos, namorados e afins que ainda deixam as parceiras batalharem sozinhas para manterem a saúde dos relacionamentos.

Dos erros das mulheres na perpetuação do machismo a gente sabe, agora vocês é que precisam ter consciência e responsabilidade com as falhas de vocês. Não desviem o foco da discussão, apenas melhorem!

Se os homens fizessem um esforço de prestar atenção com mais cuidado, veriam que embora sejam os criadores, mantenedores e beneficiários supremos do machismo, também são muito prejudicados pela sociedade desigual que resulta desse sistema desigual.

As cobranças que eles recebem são pesadas para se comportarem como ‘homens de verdade’, bem sabemos. E esse conceito de ‘homem de verdade’ é todo pontuado por violência e preconceitos. Mas o sofrimento de boa parte dos homens com o machismo não se compara com o que acontece com as mulheres. Elas morrem por conta da estrutura machista e da permissividade do machismo.

Machismo mata, lembrem disso!

Nesse último final de semana de feriado prolongado, de 15 a 19 de novembro de 2018, em pleno século XXI, mulheres foram esfaqueadas por ex-parceiros que não aceitaram o fim dos relacionamentos na Bahia, no Rio, em Minas e em São Paulo. Quatro casos, quatro dias de feriadão, quatro estados diferentes do país!

Isso não é normal, então parem de chamar feminicídio de amor. Feminicídios ainda acontecem porque a estrutura machista da sociedade permite que namorados e maridos acreditem que são donos de suas parceiras! E ser dono das pessoas não tem a menor relação com amor. Amor demanda respeito pela autonomia e pelas vontades da outra pessoa. Feminicídio é crime e é crueldade. É uma doença social grave e deve ser combatido como tal.

Autoanálise e autocrítica é coisa de gente, não tem gênero. Então, os homens precisam admitir que mesmo indiretamente, mesmo quando não levantam a mão para as próprias parceiras, se eles se omitem, se calam ou minimizam qualquer forma de violência contra as mulheres, seja psicológica, verbal, física ou econômica, eles estão sendo coniventes com o machismo que cria assassinos.

Lista enorme de erros

Quem erra e quer redimir o erro, se esforça para entender o contexto do mundo onde vive e busca melhorar a cada dia, nos pequenos e nos grandes gestos. Você deixa sua colega da mesma profissão levar os créditos pelas ideias dela ou as rouba para si? Interrompe mulheres quando elas estão argumentando ou tenta desacreditar o argumento delas com deboche? Você controla o tamanho da saia ou o batom da sua namorada? Você se mete na forma como a sua esposa gasta o dinheiro que ela ganha com o próprio trabalho? Você se faz de surdo quando seus filhos estão traquinando ao invés de ir lá orientar e educar? Você deixa as despesas da casa a cargo da sua parceira enquanto o seu dinheiro vira gadgets descolados? Você não faz a sua parte nas tarefas da casa onde você também mora?

Tem uma lista enorme de atitudes machistas incorporadas na sua educação e que precisam ser modificadas, pense nisso. Para você sua parceira é uma substituta da sua mãe porque você acha normal sua mãe fazer todas as tarefas domésticas porque era assim que seu pai agia? Você trai a sua parceira porque seu pai tinha amantes e você acha que é assim mesmo porque homem não sabe se controlar? Deseduque-se desses equívocos e reeduque-se para ser participativo, solidário, parceiro de verdade da pessoa que está ao seu lado. Chega de reproduzir os enganos das gerações passadas por hábito e conveniência. A intenção é evoluir, se tornar alguém melhor e mais digno.

Comentários desnecessários

Dá trabalho, mas é possível, basta ter boa vontade e persistir nas tentativas de acertar e se esforçar mais e de verdade para mudar, ao invés de choramingar na internet que ‘já não se fazem mais mulheres como antigamente’ ou ‘ hoje em dia os homens não podem mais dizer ou fazer nada que as mulheres criticam’.

Rapazes, parem de entrar em caixas de comentários para dizer “ah, mas as mulheres isso e aquilo” cada vez que alguma garota aponta erros que vocês cometem e olhem com mais atenção para as próprias vidraças, mirem-se nos próprios espelhos sem medo e sem vergonha de admitir que o machismo é feio, injusto e injustificado.

*Também publicado na sessão (Im)paciente Crônica, do blog Mar de Histórias

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Papo de Mulher: encontros mensais em Salvador

Niliane Brito e Erika Saab idealizaram o projeto

O projeto Papo de Mulher, idealizado pelas psicólogas Niliane Brito e Erika Saab, promoverá encontros mensais, em Salvador, para discutir temas como autoestima, relacionamentos, feminismo e assuntos nos quais as mulheres tem dúvidas, interesse ou que geram alguma angústia. A ideia dos encontros é proporcionar um espaço de acolhimento e compartilhamento de experiências entre mulheres, com a mediação das duas profissionais.

O primeiro Papo de Mulher já tem data, será em 19 de junho, no Itaigara, com o tema “E foram felizes para sempre”, que vai abordar as relações amorosas, as crises de relacionamento e as diferentes linguagens do amor.

Os encontros vão ocorrer uma vez por mês e o ingresso de cada sessão custará R$ 60. Segundo as organizadoras, há a possibilidade de planos com pacotes promocionais.

Para obter mais informações e fazer inscrição acesse o site Eventbrite ou mande e-mail para: [email protected].

Serviço:

O quê: Projeto Papo de Mulher

Quando: 19 de junho, às 19h

Onde: Rua das Hortênsias, número 740, Edf. Comercial Itaigara, sala 602/603 – Pituba

Quanto: R$ 60 por encontro (aceita cartão de crédito)

Contato: (71) 99948-6979 ou 99922-1003

Inscrição: Eventbrite ou [email protected]

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Análise: Eu não sou um homem fácil (ou de como um filme ajuda a reforçar preconceitos)

SPOILER: esse texto é uma análise do filme e contém descrição de várias cenas.

O filme francês Eu não sou um homem fácil, produção original da Netflix dirigida por Eleonore Pourriat, é daqueles que promete revolução, mas descamba para a mais pura decepção. A ideia é interessante, mas a execução ficou aquém das expectativas. O filme promete mostrar aos homens como é difícil e sofrido ser mulher em um mundo machista, mas na verdade reforça estereótipos tanto machistas quanto masculinistas. Fiquei muito triste que uma coisa tão misógina foi dirigida por uma mulher.

O mote do filme é criar uma realidade paralela, onde os homens fazem o papel de mulheres na sociedade e as mulheres fazem o papel de homens. A inversão acontece depois que o protagonista leva uma pancada na cabeça e desmaia, acordando nesse mundo alternativo onde o poder pertence a mulheres masculinizadas e os submissos são homens feminilizados.

Os erros já começam dessa forma binária e estereotipada de definir o que é papel de homem e o que é papel de mulher como um tipo de ‘ordem natural’ das coisas. Sendo que, em nenhum momento, o filme questiona o erro que é considerar os papéis femininos como inferiores. Feminilidade e masculinidade estereotipadas da forma mais rasteira são a base do filme. Como se as mulheres precisassem virar homens – e ainda por cima do tipo mais torpe, que é homem machista – para serem respeitadas. A concepção do filme parte da crença equivocada e apregoada por machistas e masculinistas em uma ‘natural’ inferioridade feminina.

O título já dá indícios da bomba. Mas confesso que resolvi dar uma chance mesmo sabendo que o modelo de mulher a ter o papel invertido com o de um homem no longa é aquele que se convencionou chamar de ‘difícil’, em contraste, óbvio, com as mulheres ‘fáceis’, aquelas que segundo os machistas: ‘estão pedindo’. E nem é tradução infeliz, como muitas vezes acontece nas adaptações para o português. Nesse caso, o nome original do filme é Je ne suis pas un Homme Facile. A tradução foi literal.

A produção se pretende sátira social com tons de comédia, mas é rasa e destila diversos outros preconceitos, como homofobia e lesbofobia, daí que não tem a menor graça. O problema maior é que faz isso de forma disfarçada. O filme se vende como feminista, mas confunde de maneira tosca a luta por igualdade de direitos e por respeito das mulheres com o mais rasteiro femismo.

A mistura de conceitos entre feminismo e femismo é feita de forma tão sutil que eu tive a tristeza de presenciar, nas discussões da rede de cinéfilos Filmow, da qual faço parte, dezenas de mulheres caindo no engodo da proposta e defendendo esse filme. Inclusive, parte do texto que escrevi nos meus comentários sobre a produção lá na rede social, uso para rechear essas reflexões no blog.

Damien vai trabalhar de moleton porque no mundo invertido, ele considera suas roupas ‘afeminadas’. A palavra hot (quente e gíria para gostosa/o) só transforma a objetificação feminina em piada

Veneno mortal

Eu não sou um homem fácil tenta dar aos homens um pouco do próprio veneno, mas só desrespeita ainda mais as mulheres e o feminismo, fazendo de uma luta justa uma caricatura. O feminismo não existe para transformar as mulheres em um outro tipo de homem. O feminismo existe para reivindicar que as mulheres sejam livres, respeitadas e tenham oportunidades iguais às dos homens para ser e fazer o que quiserem, sendo elas mesmas.

Ao confundir feminismo com femismo, o roteiro reforça argumentos falaciosos dos machistas e masculinistas para deslegitimar e destratar o feminismo e para minimizar as reivindicações das mulheres por um mundo de oportunidades iguais e de respeito igual, sem que para isso nós tenhamos de reproduzir justamente os comportamentos que abominamos nos machistas.

O roteiro cai no engodo de que as “mulheres tem inveja do falo”, algo que já caiu por terra. “Falo” aqui usado para representar poder e não o pinto no sentido literal. Mas já vimos ao longo da história que um mundo onde o poder é majoritariamente masculino, é um mundo doente. A forma masculina, machista e patriarcal de exercer poder faz mal às mulheres e aos próprios homens.

A cena inicial do filme mostra o quanto o machismo é doentio com bastante clareza. O personagem Damien, protagonista da história, vivido por Vincent Elbaz, aparece inicialmente na infância, em uma peça da escola. A menina que faria o papel da Branca de Neve na peça adoece e uma professora pergunta para as outras crianças do elenco quem gostaria de usar a roupa de princesa. Damien pede para usar e, ao entrar no palco, é ridicularizado.

Todos os adultos que assistem ao espetáculo, supostamente os pais e mães das crianças, apontam para Damien e gargalham, humilham uma criança pequena que ainda não tem nenhuma ideia do que seja identidade de gênero. Criança só quer brincar e ser feliz.

A socialização das crianças ainda acontece de uma forma muito errada, com a escola, as famílias e a sociedade em geral estabelecendo normas diferentes para meninos e meninas, separando desde os tipos de brinquedos à cor das roupas. Pais e mães, infelizmente, ainda exigem dos filhos uma postura máscula e das filhas que sejam delicadas. (Se quiser saber mais sobre o assunto, recomendo reportagem do jornal Correio* sobre ‘crianças viadas’).

Um dos discursos dos masculinistas é o de que homens que assumem suas responsabilidades no cuidado da casa e dos filhos são emasculados (perdem a virilidade). O filme reforça essa ideia absurda

Clichês infelizes

Infelizmente, esse filme engana muita gente com a falácia de que a inversão de papéis faz os homens sentirem na própria carne o que é ser mulher. Mas ele não faz, só reforça o preconceito e a noção equivocada de que a mulher é mais frágil e, portanto, tem menos valor.

O filme é um acumulado de clichês infelizes. Os homens com papéis inversos são colocados em posição inferiorizada porque os machistas e masculinistas acreditam que mulher é um ser inferior. O aspecto de feminilidade mostrado nesse filme é o tempo todo menosprezado e isso não cria consciência do inferno que nós mulheres vivemos, apenas reforça convicções equivocadas de que valemos menos que qualquer homem.

Todos os homens em papéis inversos são colocados em posição afeminada de forma pejorativa, como se ser afeminado fosse algo desqualificante, por isso o filme é absurdamente homofóbico. Mostra ainda que um pai assumir a paternagem tira a virilidade dele. As mulheres pegadoras do filme precisam ter atitude de ‘macho alfa’ para serem admiradas. O filme desconsidera que uma mulher tem todo o direito de ter quantos parceiros sexuais ela quiser sem precisar se masculinizar.

Tem outras cenas de dar vergonha alheia. Em uma delas, um rapaz entra aos prantos na casa de uma mulher que o teria trocado por outro e começa a quebrar objetos e a pichar as paredes com xingamentos. Precisa explicar que a tal sátira sai pela culatra porque atribui às mulheres – lembre que no filme os papéis são inversos – um temperamento histérico, inseguro e lamuriento? Tudo o que os caras que aprontam  perversidades em relacionamentos abusivos querem é passar a ideia de que as ex são loucas. E o filme dá munição para eles.

Outro exemplo de matar: o melhor amigo de Damien é casado e chega à academia de ginástica revoltado porque a mulher dele o estaria traindo. O detalhe sutil, ele vai fazer Pilates, como se a modalidade não fosse ‘coisa de macho’. No filme, as mulheres fazem boxe e musculação, porque essas modalidades no mundo invertido são atributos exclusivamente masculinos. Só aviso que o Pilates foi inventado por um homem, inclusive, para tratar sequelas de feridos em batalha. E me decepciono com o fato do filme ser tão sexista que estabelece até quais atividades físicas são de homem e quais são de mulher. No mundo de quem escreveu esse roteiro não existem rondas rouseys.

O marido traído em questão, diz que pretende tirar satisfação com o rival porque “ninguém toma o que é dele”. Mais uma vez, se os papéis são invertidos, o filme está dizendo literalmente que as amantes é que são as culpadas pela traição dos maridos safados que existem por aí e que esposas traídas deveriam ter ódio dessas amantes, porque afinal, seus maridinhos coitados, são homens e por isso seus pecados devem ser todos perdoados pelas ‘leis da natureza.’ Afinal, pinto não pensa e homem é imaturo, tsc tsc!

Paródia desrespeitosa com os grupos feministas que utilizam a nudez como ferramenta de protesto

Cada um com sua responsabilidade

Não digo que mulheres que se envolvem com homens que elas sabem ser comprometidos não tenham sua parcela de responsabilidade na infelicidade alheia. Elas têm. Embora sejam solteiras, poderiam ser mais solidárias com as outras mulheres e não dar trela para homem escroto que desrespeita a pessoa com quem é casado. Mas daí a vilanizar amantes e absolver os homens que têm até mais culpa porque eles é que são os casados na história, definitivamente, não dá! É agressão demais à inteligência das expectadoras.

Outras cenas que me deixaram triste, aliás, eu queria ‘desver’ esse filme: quando a mulher do amigo de Damien está assistindo futebol na TV e usa palavras como ‘biscate’ e ‘vadias’ para xingar as jogadoras do time adversário; quando o filho mais velho do amigo de Damien sai de casa para ir à aula de balé (como se meninas adolescentes só pudessem fazer balé na vida!); quando, em um bar, Damien bebe demais e começa a ser molestado por um grupo de mulheres e a esposa do amigo dele chega para ‘defendê-lo’ e cai na porrada com outras mulheres, mais uma atitude de ‘macho alfa’ invertida; as cenas de homens se depilando, colocando máscara facial e cuidado da beleza física com o objetivo de ser mais atraentes para suas mulheres, partindo da ideia de que mulher só se arruma para agradar homem e não para ela mesma; e, por fim, as mulheres no banheiro do boteco mijando em pé com a tampa do vaso abaixada e arrotando, como qualquer homem ogro que se preza.

O olhar desse filme sobre diversidade e respeito é tão distorcido que também desconsidera todas as outras possibilidades de vivência da identidade de gênero e da sexualidade humana para além de homens e mulheres e das relações heterossexuais. Um exemplo de lesbofobia que vi nos comentários do Filmow: mulheres dizendo que a personagem Alexandra, a namorada de Damien, é sapatão, como se ser lésbica fosse desqualificante.

O mais irônico é que as mesmas pessoas que acharam a reinvenção da roda ver mulheres bancando as opressoras, também acharam estranho a atitude masculinizada da personagem e já rotularam de sapatão como se ser sapatão fosse ofensivo!

Ou seja, o filme só complica mais ainda o parco entendimento da média da população sobre gênero, sexualidade e identidade. Ao invés de desconstruir preconceitos, reforça estereótipos. A sensação que dá é que quem escreveu o roteiro milita na causa masculinista, que tem como foco justamente desacreditar o feminismo e pregar que as mulheres desejam ‘subverter a ordem natural’ e dominar o mundo, oprimindo os ‘pobres coitados’ dos homens. Masculinistas são misóginos e o filme prega a misoginia disfarçando o discurso em sátira e humor duvidoso.

Damien e o uso equivocado do shortinho. Um reforço do filme à cultura do estupro

O outro lado da moeda

Em outra cena, Damien vai trabalhar de shortinho e recebe cantadas bizarras na rua, como a maioria das mulheres recebe diariamente. Só que ele ri dos comentários grosseiros e ainda passa a ideia errada de que mulher, ao sair de roupa curta, ‘está pedindo’ para ouvir baixarias! Damien veste o shortinho com o intuito deliberado de seduzir a nova chefe. O filme transmite outra ideia totalmente errada, pois mulher não veste roupa curta para se objetificar deliberadamente. Vestimos o que gostamos e o que nos deixa confortáveis, de acordo com a estação do ano, o humor, a nossa vontade. Quem lança olhares objetificadores sobre nossos corpos são os homens, que com isso querem nos controlar e tolher. 

Mulher também não ri de cantada grosseira, ela fica constrangida e amedrontada, porque os índices de estupro alarmantes estão aí para nos mostrar que vivemos em um mundo cruel, onde as mulheres que vestem roupas curtas ‘estão pedindo’ (olha o discurso machista aí de novo) e onde o espaço da rua é hostil para as mulheres porque convencionou-se de achar que a rua é lugar de homem e o lar é o lugar da mulher.

Desonestidade intelectual e má fé

Damien é um personagem consciente da inversão dos papéis. Ele é o único personagem do filme que lembra de como era o mundo antes da troca de posições e, na maioria das vezes, suas reações diante da opressão das mulheres e da submissão dos homens no mundo invertido é uma atitude de ‘macho alfa’ que se sente ameaçado e que quer que as coisas retornem a ser o que eram.

A inversão do mundo, e atentem que para haver uma ideia de inversão é preciso antes haver a ideia de uma ‘norma’, é um delírio do protagonista, mais uma prova de que ele é o alter-ego de todo machista e masculinista de plantão que morre de medo de virar a presa, ao invés do predador.

Do meio para o fim, o filme junta Damien com um grupo de homens que militam no ‘masculismo’ contra a opressão feminina. O ‘masculismo’ do filme seria o feminismo inverso. E é aí que o roteiro, mais uma vez, erra rude! Os caras preparam um ato de protesto vestindo próteses de silicone que simula seios femininos, em uma paródia de mau gosto dos grupos feministas que utilizam o corpo nu como arma de resistência.

Tentei assistir a Eu não sou um homem fácil com o coração aberto, apesar desse título infeliz e da cena inicial que me partiu a alma. Mas dei um voto de confiança e achei que no avançar das cenas, a produção poderia ser educativa para homens que insistem no machismo e para mulheres que ainda reproduzem julgamentos machistas sobre outras mulheres. Mas, infelizmente, a produção só utilizou a opressão vivida por nós mulheres como pano de fundo para tecer uma narrativa perigosa, que menospreza o tamanho das nossas dores e faz propaganda antifeminista e misógina. Deseducativo para homens e mulheres até dizer chega!

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Cinema espanhol: filmes dirigidos por mulheres

A dica vai para os amantes do cinema. O Instituto Cervantes de Salvador, realiza, entre os dias 4 de maio e 8 de junho, sempre às sextas-feiras e às 18h30, mais uma edição da Mostra Espaço Feminino: Mulheres Diretoras no Cinema Espanhol. O objetivo da mostra é apresentar a cultura cinematográfica da Espanha a partir de filmes dirigidos por mulheres.

Os filmes escolhidos em cada edição, que tem organização e curadoria da Coordenação de Festivais de Cinema Feminino TRAMA (para longas-metragem) e da CORTOSFERA (para os curtas), propõem um diálogo entre cultura cinematográfica e as discussões de gênero.

A programação é gratuita e as produções, exibidas no auditório do Instituto Cervantes, têm áudio em espanhol e legenda em português.

Programação

MAIO

Dia 04

A Noiva (La Novia), de Paula Ortiz (Espanha, 2015, 93 min) – Classificação: 16 anos

Desde pequenos, Leonardo, o noivo e a noiva formam um triângulo inseparável, mas à medida que se aproxima a data do casamento, as coisas começam a se complicar entre ela e Leonardo, porque entre os dois sempre houve algo além de amizade. A crescente tensão entre eles é como um fio invisível, impossível de explicar, e tampouco romper. Inspirado na peça teatral Bodas De Sangue, de Federico García Lorca.

Dia 18

Requisitos Para Ser Uma Pessoa Normal (Requisitos para ser una persona normal), de Leticia Dolera (Espanha, 2015, 81 min) – Classificação: 7 anos

María de las Montañas é uma mulher de 30 anos a quem a vida não sorri: ela não tem emprego, foi expulsa de seu apartamento, não tem parceiro e vive longe de sua família. Em uma entrevista de trabalho lhe perguntam que tipo de pessoa ela é e, ao perceber que não cumpre nenhum dos requisitos para ser considerada “normal”, ela começa a reunir esforços para isso: se tornar uma pessoa normal.

Assisti esse no ano passado, na Netflix, e recomendo para quem gosta de comédias leves e meio nonsense, com protagonistas ‘gente como a gente’.

Dia 25

Riot Girls: Espanholas em Curta

Senhora Wamba (Miss Wamba), de Estefanía Cortés (Espanha, 2017, 17 min)

Classificação: 7 anos

Uma mulher atormentada pelo passado conhece um idoso com o qual tem uma empatia imediata. Oásis, de Carmen Jiménez.

Oásis, de Carmen Jiménez (Espanha, 2014, 15 min)

Classificação: 16 anos

Nieves é contratada como porteira de um edifício em meio de ruínas na cidade de Nova York. O trabalho fica mais difícil que o previsto quando descobre o segredo que esconde um dos apartamentos.

Sara à Fuga, de Belén Funes (Espanha, 2015, 15 min) – Classificação: 12 anos

A jovem Sara vive há muito tempo numa instituição para menores e não vê o pai há muitos anos. Ele prometeu vê-la, mas suas promessas não têm nenhum valor para Sara. A tutora Núria fará o possível para ajudá-la na dramática situação de Sara.

Escória, de Laura Sisteró e Alejo Levis (Espanha, 2016, 16 min)

Classificação: 7 anos

Uma pequena comunidade de jovens mulheres está marcada por uma série de estranhas normas e rituais. A rotina é interrompida com a morte de uma delas. A melhor e mais íntima amiga da vítima se rebela contra a líder do grupo e às imposições existentes.

JUNHO

Dia 8

María Moliner – Estendendo Palavras (María Moliner – Tendiendo palabras), de Vicky Calavia (Espanha, 2017, 70 min)

Classificação: Para todas as idades

Documentário sobre a vida de María Moliner. Autora de um dos principais dicionários da língua espanhola, ‘Diccionario de Uso del Español’, a bibliotecária dedicou a vida dela à difusão da cultura através dos livros. Uma das intelectuais mais importantes da lexicografia espanhola.

Anote na agenda:

O quê – Mostra Espaço Feminino: Mulheres Diretoras no Cinema Espanhol

Quando – de 04 de maio a 08 de junho, às 18h30

Onde – Auditório do Instituto Cervantes de Salvador (Ladeira da Barra)

Quanto – entrada gratuita. Sujeita à lotação do auditório.

*Com informações do Instituto Cervantes Salvador

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Por que tanto interesse na vagina alheia?

A mania nacional é se meter na vida dos outros, principalmente das outras. E ditar regras de comportamento. E determinar o que é certo ou errado até na vagina alheia. Presenciei uma conversa em que os interlocutores torciam o nariz para a ginecologia estética. Um dos alarmados com a prática era um homem cheio de ‘boas intenções’. Ele defendia que uma feminista que se preocupa com a estética da vagina está traindo o movimento.

Bom esclarecer que não se tratava de trair movimento nenhum, porque as feministas defendem todos os movimentos baseados no respeito e na dignidade. Se alguém, principalmente homem, explica que o feminismo é sobre proibições, não entende nada do assunto. Feminismo é sobre liberdade, sobre ter o direito de ser e fazer o que quiser, sendo respeitada pelas próprias escolhas.

É sobre igualdade de direitos e de oportunidades. Sobre autonomia, autoconfiança, autoestima. Sobre não ceder às pressões ditadas por quem insiste em rotular, enquadrar e ditar regras de comportamento para as mulheres, como se elas fossem coisas sem vontade, propriedade, objeto inanimado. Como se suas vaginas, embora estejam em seus corpos, pertencessem ao coletivo e todo mundo pudesse palpitar!

Vênus de Urbino (Ticiano, 1538)

Vários movimentos em um só

O que se chama de movimento feminista teve muitas fases desde a sua origem. E cada fase dessas fez jus ao tempo histórico onde esteve inserido e deu sua contribuição para que nós chegássemos onde estamos. Daí para a frente é com a gente e com as gerações que vão nos suceder, porque ainda existe muita coisa a ser conquistada.

De alguns anos para cá, o feminismo deu mais saltos evolutivos. E, cada dia mais, vem se tornando não um, mas diversos movimentos que se apoiam e conectam, porque existem muitas formas de vivenciar o feminino. E, por isso, há quem prefira agora dizer feminismos, no plural, para incluir todas as vertentes, ao invés de incentivar clubinhos.

Mulher não é ‘tudo igual’. Vagina não é ‘tudo igual’, como pensam os machistas de plantão. E tem mulheres que vivem experiências e opressões específicas, como as trans, as negras, as lésbicas, as gordas, etc.

Os feminismos vêm buscando se abrir para essa diversidade de vivências do feminino porque o mundo vem buscando se abrir para a diversidade das pessoas. O caminho ainda é longo, cheio de avanços e recuos, mas a gente chega lá, tem de continuar caminhando e superando os obstáculos.

Voltando a focar na vagina

Esclarecidos, rapidamente, o que são os feminismos deste século XXI onde vivemos, quero falar da vagina, porque é esse determinado aspecto da anatomia de determinados corpos femininos que as pessoas querem controlar.

Vamos filosofar sobre o que significa alguém, especificamente se for homem, abrir a boca para criticar quem fez plástica na vagina. Entender o que leva alguém a estabelecer se é feminista ‘raiz’ ou ‘nutella’ quem fala sobre o assunto sem pré-julgamentos e preconceitos.  

Até porque, de verdade, gente, se a vagina não é sua, para que mesmo interessa se A, B ou C operou, cortou, esticou, lipoaspirou, rejuvenesceu, apertou, elasteceu?

Para ser justa, não são só os homens que não têm direito de criticar quem faz o que quiser e bem entender com a própria vagina. Mulheres não tem o direito de ditar regras e estabelecer normas sobre o corpo das coleguinhas.

Vênus Capitolina (Séc. IV A.C.)

Nem ranking, nem medalha

Ainda existem moças que não perceberam que o feminismo não se trata de estabelecer as suas normas para enquadrar as outras, tirando do clube as mulheres que alguém considera não serem dignas de pertencer ou carregar o título de feministas. Ainda tem mulher querendo determinar quem deve ou não ser considerada ‘mulher de verdade’. Leiam Simone de Beauvoir, revisar os clássicos sempre ajuda.

Não tem carteirinha. Não tem essa de raiz ou nutella. Não existe mulher de verdade ou de mentira. Tem inclusão. Não é para fazer ranking entre os muitos feminismos, é para ter respeito. Solidariedade entre mulheres que se unem pelos pontos em comum e se respeitam nas diferenças e apoiam as lutas umas das outras. Porque se eu não sei o que significa ser mulher trans, lésbica ou negra, tenho de dar um passo atrás e deixar as trans, lésbicas e negras serem protagonistas de suas lutas.

Por também ser mulher, dou o meu apoio, me solidarizo com a dor de quem tem uma realidade diferente da minha. Mas não estabeleço hierarquia entre minhas necessidades e as das outras mulheres. E nem digo que a bandeira que carrego é mais ou menos pesada ou importante, apenas tem diferenças. No dia em que todas as mulheres entenderem isso, o machismo estará ferrado de vez!

De boas intenções…

É preciso cuidado com as boas intenções e os infernos que elas trazem. Criticar algo que não se gosta, concorda ou faria é um direito. Mas desmerecer quem faz uma escolha diferente da nossa é desrespeito.

Da mesma forma, é desonestidade rotular de melhor ou pior feminista quem respeita a decisão alheia de operar a própria vagina. É desonesto porque padroniza e estimula a competição entre as mulheres. Uma mulher não pode ditar regras sobre os corpos e as vontades de outra, porque uma não é a outra. Para decidir, é preciso vestir a pele da colega no sentido literal e isso não existe. Eu visto meu corpo, você veste o seu.

Empatia é entender a dimensão da dor do outro, fazendo um exercício de se colocar no lugar da pessoa ferida, mas isso só é possível metaforicamente. Por mais empatia que se tenha, nunca seremos capazes de sentir exatamente o que o outro sente. Porque os corpos e os espíritos são diferentes. O bonito é compreender o outro mesmo na diferença.

As três graças (Rafael, 1504)

A vagina no meio do debate

O problema com técnicas para rejuvenescer ou remodelar vaginas, para mim, não é a medicina, ou estética, em si, mas o conceito por trás da intervenção. O serviço foi criado em algum momento por existir demanda. Assim como ocorre em outras intervenções – como a lipoescultura, lifting facial, redução ou aumento de seios -, no caso das vaginas remodeladas, existe sim um certo modelo opressivo vendido como ‘a mulher ideal’. É preciso alimentar a indústria que existe à custa da nossa insatisfação.

O ponto é descobrir porque as insatisfações se tornam insatisfações. O desafio é expandir cada vez mais esse círculo que restringe a um determinado tipo de padrão, de corpo, de pele, de cabelo, de tamanho, e ir incluindo o máximo de gente. Até que um dia todo mundo entenda que a pluralidade é boa e as belezas são diferentes, nem melhores, nem piores.

Essa demanda foi gerada por quê? Por que tem mulheres que se sentem inseguras com seus corpos apontados e vigiados? Por que tem mulheres que se sentem humilhadas pelos parceiros que, quando elas envelhecem, costumam fazer comentários maldosos sobre o aspecto de suas vaginas, como se eles também não ficassem mais velhos e flácidos? Por que existe uma cultura secular que desmerece as vaginas, que odeia vaginas, que despreza, diz que são feias, que fedem, que estão largas de tanto transar? Por que existe um culto à juventude, que muitas vezes beira à pedofilia, que enaltece as ‘novinhas’? Por que existe um fetiche cruel de que quanto mais apertada for a mulher, mais o homem terá prazer, mesmo que durante o sexo ela sinta dor e incômodo? E como se o prazer dela não fosse tão importante quanto o dele? A resposta é sim para todas essas perguntas acima e para outras que não couberam aqui.

Existe uma lógica perversa por trás dos ideais de beleza e sensualidade femininas? Existe. Mas existe também um discurso que se pretende em defesa das mulheres, mas no fundo, é só mais uma caixa que tenta nos aprisionar, etiquetar e desconhecer nosso direito mais básico e humano de decidir ‘sem ser julgadas’ o destino de nossos próprios corpos, vontades, sexualidade…

Sem falar, também, no tanto de homem por aí que se acha no direito de nos explicar o que são os movimentos feministas e como uma feminista deve ser ou se comportar. Sério, rapazes? Vocês querem mesmo explicar para as mulheres como é ser mulher e lutar por direitos e reconhecimento em um mundo ainda dominado por homens?

Sim, e daí?

A conclusão desta longa reflexão é bem simples: a mulher que decide se submeter a uma intervenção na vagina ou em outra parte do próprio corpo por estética, e não por necessidade da saúde do órgão, tem seus motivos e só ela sabe quais são ou porque cederá a eles.

Pode questionar se é por ela mesma que faz a cirurgia, se para favorecer a própria autoestima, ou se vai encarar o risco de um procedimento invasivo e um processo de recuperação, às vezes incômodo, só para agradar alguém ou obedecer aos padrões da sociedade?  Até pode. Mas pode, e deve, principalmente e sempre, respeitar a decisão que ela tomar, porque só ela sabe o que carrega no corpo.

Às vezes, dá aquela vontade de ter varinha de condão e sair por aí fazendo abracadabra e botando juízo e bom senso na cabeça de quem a gente acha que está precisando. Mas, se as pessoas tivessem esse poder, já imaginaram como o mundo seria assustador?

Sejamos mais educadores e aprendizes uns dos outros enquanto pessoas. E menos juízes e algozes de quem pensa ou age diferente de nós. Nem toda mulher que faz plástica em qualquer parte do corpo tem a autoestima baixa ou é teleguiada. A lógica perversa existe, as demandas sugeridas também, tem muita gente que ainda se ilude ou deixa abalar por críticas negativas e por pressões de companheiros, é verdade.

Mas é preciso reconhecer e respeitar a liberdade de cada pessoa, principalmente de cada mulher, fazer o que deseja com o próprio corpo e a própria vida. Desde que nossas decisões individuais digam respeito apenas a nós mesmas e não prejudiquem aos outros, ninguém tem direito de interferir, mesmo com ‘boas intenções’.

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