Nomear o mal para assim, conhecendo-o, poder lutar contra ele. O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão, de Andrew Solomon (Companhia das Letras, 2014), não só batiza, como faz a autópsia de um dos males mais cruéis e, ainda hoje, incompreendidos, embora a notificação de casos venha aumentando no rastro da busca cada vez maior por esclarecimento sobre os transtornos depressivos.
O livro, lançado em 2001 e publicado no Brasil em 2014, com um epílogo exclusivo para a edição brasileira ,onde o autor atualiza alguns fatos da edição original, contribui significativamente para diminuir o estigma sobre a doença. Mérito, aliás, do excelente trabalho de reportagem do autor, que é também um paciente em tratamento, com histórico de pelo menos três grandes surtos depressivos, como ele mesmo descreve.
Mas, o livro vai além de um relato pessoal ou de uma pesquisa aprofundada e desenvolve no leitor que não conhece o assunto na carne, a empatia por quem luta para não ser devorado por esse ‘demônio’. Me senti tocada e muito próxima das pessoas que sofrem da doença. Ao menos, mais capaz de compreendê-las.
Esclarecedor, sensível, rico em detalhes e extremamente didático, o que ajuda bastante como introdução ao tema para quem é leigo no assunto, a obra traz ainda muitos relatos de pacientes, com seus dramas e histórias de vida, bem como as tentativas de vencer a depressão.
O livro é denso e recheado de informações. Exige atenção na leitura, oferece quase 100 páginas só com notas explicativas, mas ainda assim é uma leitura agradável, sem academicismos, que dialoga com o leitor comum e descortina para ele um tema espinhoso, sem simplificar demais e sem complicar só por puro pedantismo.
Vale destacar as análises bastante lúcidas do autor sobre a atuação da indústria farmacêutica no tratamento da doença e do quanto, se por um lado, doentes de depressão precisam muito dos remédios para lutar contra o mal; por outro, existe uma tendência meio irresponsável de certas áreas da medicina em banalizar a prescrição de antidepressivos para quem não necessariamente precisa dessas drogas.
Solomon também passa em revista as psicoterapias, mostrando o quanto tomar coquetéis de remédios sem ter um acompanhamento psiquiátrico adequado é ineficaz para evitar recaídas. Do mesmo jeito que apenas fazer terapia sem o uso dos fármacos, para muitos doentes, não surte efeito e agrava os episódios da doença.
Os problemas da mente, como Andrew Solomon diz tão bem, ainda acarretam preconceito e falar do assunto é tabu, daí ele afirmar que “a depressão é uma doença solitária”. Por medo, por desconhecimento, por indiferença, a depressão ainda não recebe a atenção e cuidados compatíveis com o impacto que provoca não só na vida dos doentes, mas na de todos ao redor dele e na própria sociedade, em termos, por exemplo, da produtividade, criatividade e participação laboral e social dos afetados.
A depressão estigmatiza e enche os doentes de culpa. Pessoas com depressão acumulam quantidades impensáveis para quem não sofre da doença de sofrimento psíquico justamente por tornarem-se incapazes de ser elas mesmas e de produzir como fariam se não estivessem doentes.
Se enchem de tristeza ainda maior porque têm consciência do quanto suas famílias sofrem. E Solomon ilustra o quanto a doença é cruel ao trazer para o leitor de O demônio do meio-dia as inúmeras histórias de depressivos e de suas batalhas contra a doença incapacitante. Principalmente de mães depressivas que acabaram arrastando os filhos para esse mesmo poço, criando um ciclo difícil de quebrar.
Por outro lado, ele também faz um alerta para as famílias sobre a forma correta de acolher e amparar seus membros acometidos pelo problema. Segundo o autor, fingir que não está acontecendo nada, mantendo o demônio trancado no armário não faz com que ele desapareça ou diminui os estragos que é capaz de causar.
De forma bastante franca, o autor toca ainda no maior dos tabus dentro do espectro da depressão, o suicídio. E faz isso expondo a própria tentativa de se matar e contando as experiências de outros entrevistados. As histórias das pessoas entrevistadas pelo escritor, inclusive, são comoventes e dramáticas, mas o autor, até por viver a realidade da doença, não explora os dramas de suas fontes de forma banal, nem mesmo quando aborda a sombra do suicídio.
Ao contrário, ele dá voz a um grupo invisível e, em até certa medida, marginalizado e desumanizado por tratamentos que ao invés de buscar o modo peculiar como a doença mental se manifesta de pessoa para pessoa, homogeniza todos os pacientes em um amálgama sem contornos.
Se o doente depressivo já é estigmatizado, o doente depressivo que tentou se matar representa quase uma mácula indesejada para uma sociedade que não admite a existência sequer das pequenas tristezas cotidianas, que dirá de um abismo que oferece a morte como solução final.
Considerado um dos melhores tratados sobre o tema não escritos por psiquiatras, O demônio do meio-dia deriva de artigos que Andrew Solomon escreveu ao longo da década de 1990 para a revista New Yorker. O livro foi finalista do Prêmio Pulitzer, em 2002, e também recebeu homenagens como a do National Book Award, em 2001.
Todo esse reconhecimento, bastante merecido ressalte-se, não é nada comparado às histórias de gratidão – que chegam a ele por meio de cartas – que o autor compartilha no epílogo brasileiro. Com sua sinceridade profunda e a coragem de expor a própria vida, Andrew Solomon transformou seu reconhecido best-seller em uma pequena luz na escuridão que, se não tem a dádiva de oferecer cura, tem ao menos o consolo de ajudar os depressivos a apaziguar o monstro que os assombra…
Um trecho do livro:
“Essa triste reunião para compartilhar a dor era um momento singular de libertação para muitas pessoas presentes. Lembrei dos meus piores momentos, daqueles rostos ansiosos e inquiridores, do meu pai dizendo: ‘Está se sentindo melhor?’, e do quanto me sentia desapontado ao dizer: ‘Não, na verdade não”. Alguns amigos tinham sido ótimos, mas, com outros, senti a necessidade de ser mais cuidadoso. E de fazer piadas. ‘Adoraria vir, mas estou no meio de uma crise nervosa, será que não podemos combinar outra hora?’ É fácil guardar segredos sendo sincero num tom de voz irônico. Aquela sensação elementar no grupo de apoio – eu trouxe minha consciência hoje, e você? – dizia muita coisa e, quase sem perceber, comecei a relaxar naqueles momentos. Muito não pode ser dito durante a depressão, só pode ser intuído por aqueles que conhecem. ‘Se eu estivesse de muletas, eles não me pediriam para dançar’, disse uma mulher a respeito dos esforços incansáveis de sua família para que ela fosse se divertir. Há tanta dor no mundo, e a maioria das pessoas guarda as suas em segredo, rodando por vidas de agonia em cadeiras de rodas invisíveis, dentro de um gesso ortopédico invisível cobrindo todo o corpo. Nós apoiávamos uns aos outros com o que dizíamos. Certa noite, Sue, agoniada, as lágrimas escorrendo pelo rímel pesado, disse: ‘Preciso saber se algum de vocês já se sentiu assim e sobreviveu. Alguém me diga isso, vim até aqui para ouvi-lo, é verdade, por favor, digam-me que é’. Outra noite alguém disse: ‘Minha alma dói tanto; preciso ter contato com outras pessoas'”.
(O demônio do meio-dia – Uma anatomia da depressão, Andrew Solomon, Companhia das Letras, 2014, pág. 155).
Ficha Técnica:
O demônio do meio-dia – uma anatomia da depressão
Autor: Andrew Solomon
Tradução: Myriam Campello
Editora: Companhia das Letras
584 páginas
*R$ 29,90 (e-book) e a partir de 64,90 (livro em papel, capa comum)
*Pesquisado em 30/07/2019 na Amazon
*Texto originalmente publicado no Mar de Histórias e na rede de bibliófilos Skoob.
Comentário Recentes