Artigo: A vitória das ruas

O artigo que selecionei para esta quarta-feira foi escrito pela jornalista Marli Gonçalves e chegou via email direto de São Paulo, para nos brindar com uma reflexão madura, divertida, sensata e ao mesmo tempo lúdica sobre a necessidade da comunicação olho no olho, do contato físico e da interação nas ruas. Apesar da violência urbana crescente nas grandes capitais, Marli defende que precisamos reconquistar a rua como espaço social de convivência. Vale a pena ler tudo! E para efeitos de organização da blogagem, a quarta agora é o dia oficial dos artigos escritos por convidados e demais especialistas que nos enviam conteúdo de primeiríssima qualidade, sempre publicado com a devida autorização e citação da autoria, lógico!!!

**A vitória das ruas

por *Marli Gonçalves

Nas ruas vemos as pessoas completas, corpinhos com perna e tudo o mais, inclusive o rebolado. Nos carros vemos só as cabecinhas. Nos shoppings são todos muito iguais. Na internet todo mundo mente muito. Telefone ainda não tem visor, a não ser por câmeras. E-mails e salas de bate-papo não podem andar zanzando com fotos por aí. Agências de relacionamento são caretas. Às ruas, pois! Às praças, parques, praias! Só assim poderemos nos encontrar.

Conheço quem pega o carro para ir daqui até ali, sem qualquer justificativa ponderável; por exemplo, alguma dificuldade motora, ou uma chuva torrencial. A pessoa só se sente segura dentro das latinhas com roda, aquilo a ajuda a superar as barreiras e fronteiras da vida; às vezes, até a própria timidez e comportamento. Todos os vidros fechados, de preferência escuros, aquela coisa horrível. Se tiverem grana, pior, os carros serão tanques blindados. Nunca mais aquela paquera gostosa do meio do trânsito!

Conheço quem não saiba andar nada na cidade sem se perder, nem pelas áreas centrais, e nunca sai dos limites de seu cotidiano, quase decorados, reprisados dia a dia. (Todos têm GPS). Não imaginam e nem se interessam pelas constantes transformações da cidade onde moram. Nem percebem as mudanças, sejam elas positivas ou negativas. Em geral, já que não reparam, é tudo ruim, estragado, feio, e elas não estão perdendo nada. Se abrissem os olhos…

Ledo engano. Não dá mais para viver sem as ruas. Sem elas, sem seu cheiro, buracos, as suas pessoas, nós ficamos míopes, ou ciclopes de um olho só. Não poderemos perceber um palmo adiante do nariz, nem comparar vivências, nem aprender, muito menos reivindicar. E o pior: quando fui procurar vantagens das ruas, lembrei-me dos malditos shoppings, ex-ilhas de segurança, onde todo mundo parece vestir, pensar, andar, fazer, falar, mostrar igual. Onde as moças andam com aquele jeitinho, de calça jeans skinny, scarpins e bolsas coloridas, cabelos escovados à enésima, e as crianças parecem saídas das revistas.

Vamos para as ruas. Onde mais tanta gente completamente diferente entre si? Onde mais toda a realidade social?

Surtei. Além dos shoppings, a violência entra em hotéis e residências, toma reféns, machuca e causa mortes.

Cena do game The Sims, que simula realidade virtual em uma praça, local por excelência da interação social nas grandes cidades. A proposta da jornalista Marli Gonçalves, porém, é que a convivência não seja meramente virtual e se converta no bom e velho contato físico no mundo aqui fora e nas praças reais

Vamos para as ruas. Todos os bairros, todos os lugares hoje têm lojas, coisas, fico boba de ver tal variedade. Antes não era assim. Nas ruas, se retoma o sentido das vilas, das comunas, da convivência. É isso que traz a segurança. Movimento.

Surtei de novo e logo eu, que não gosto de muvucas, muito menos de andar em grupos, pensei que agora deveremos passar a andar em montinhos, todos juntos, uns defendendo os outros, compactos. A garotada já se deu conta disso, e é comum hoje vermos grupos de quinze, vinte jovens, andando juntos, para o bem e para o mal. Aqui no meu pedaço, umas hordas de lombriguinhas engraçadas e quase andróginas, perninhas finas, cabelinho, e forte disposição de ser diferente. Melhor: as apresentações de seus shows particulares acontecem nas ruas. Ou são tatuados, ou usam boné, ou deixam o cofrinho de fora; cada grupo, um código. Não é mais West Side Story. É outra coisa. É a vida mudando; as gerações passando, novos guetos se formando. O aquecimento global, cromossomos XX, XYZ, genomas e genéticas, seus efeitos.

Lembrei com saudades das pracinhas do interior, do footing; das casas com janelas e portas abertas, mesmo que no mesmo nível das calçadas, Na praia ainda tinha um pouco disso, mas faz tanto tempo que não viajo que posso até já estar errada.

Onde mais encontrar o outro? Meninas, ele não bate na porta! Meninos, ela não vai cair do céu. Dá uma olhada como andam os bares na hora do tal happy-hour! Percebe que está mudando? Não tem muito mais gente, pegação, hora da alegria?

Acho também que acabou sendo uma colaboração da Lei antifumo que se espalhou pelo país, pior que bituca acesa na palha. Hoje lota qualquer berimbau, boqueta, pé-sujo, biboca, barraquinha de hot-dog, beira de esquina. Lota. Não que todos fumassem. Mas é que a convivência entre fumantes e não-fumantes é, acredito, de formação, pacífica, e um vai com o outro lá fora fumar, igual mulher quando vai ao banheiro. Tudo bem. Olha só: efeito positivo! Mais gente nas ruas. Inclusive nos passeios e calçadas. Não estou falando?

As ruas são todos os estilos musicais, formas, físicas e mentais, qualquer mistura possível de ver. Onde mais conheceríamos tantas raças de cachorros? Tantas cores de cabelos? Onde mais, homens e mulheres apaixonados andando de mãos dadas, um com um ou com outro e outro, também? Diversidade chama diversidade e criatividade. Onde mais mulheres muçulmanas, monges budistas, judeus ortodoxos, indianos com seus sáris, a neguinha com chapéu? O típico cafetão das ruas nova-iorquinas de cinema e o cabeça-chata, lado a lado, puxando incautos para os shows da noite de néons da Rua Augusta? A exposição de carros-jóias de todas as cores atrás de vitrines de vidro da Avenida Europa? Se você não estiver em Brasília, tem de parar o carro um pouco, vai se acostumando. Andar vai lhe fazer bem. Depois me conta.

Está todo mundo aí, tentando construir networking, a tal rede de relacionamento virtual que talvez até um dia possa render alguma coisa, além de amolação. Todo mundo acabou voltado para dentro, recolhido. Isso não é bom. Nos tornam frágeis, inseguros, solitários, desinformados e manipuláveis.

Porque nos torna invisíveis. Às ruas, portanto! Networking Street. Ao menos poderemos olhar uns para os outros.

*Marli Gonçalves é jornalista. Está esperando só a recuperação total para poder “bater pernas” por aí, mais longe. Sempre adorou passear. Entre outras, nos Anos 70, a moleca aqui ajudou a fazer um programa de rádio que ficava no ar ali na Rua Augusta, transmitindo recados de carro a carro. Com o Roberto Tripoli (Xexéo, para mim), e o Jacques Gregorian (que agora está com programa imperdível no site da Jovem Pan!). Eles não vão negar….

Saiba mais:

Para ler mais Marli Gonçalves: www.brickmann.com.br e marligo.wordpress.com

Para seguir a Marli no Twitter: @MarliGo

Escreva pra Marli em: [email protected] e [email protected]

**Texto encaminhado para Andreia Santana por Marli Gonçalves, via email, e publicado no Conversa de Menina mediante autorização, desde que devidamente citados a autoria e os contatos da escritora.

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Artigo: A comunicação convergente e os mitos da nova tecnologia

Hoje me aconteceu uma coisa engraçada no trabalho. Um colega, que sabe que sou editora de internet e blogueira, me mandou um scrap pelo nosso “msn corporativo”, me pedindo para ajudá-lo a entrar em uma comunidade virtual. Expliquei como funcionava e para que servia a comunidade em questão e ele ficou bastante animado com a possibilidade de trocar informações com pessoas desconhecidas e de fora de Salvador sobre a sua área de cobertura jornalística. Coincidentemente, ao chegar em casa, encontrei no meu email o texto abaixo, escrito pelo também jornalista Gustavo Schor. Coincidências não existem, diriam os místicos, e por isso, trago o artigo de Schor aqui para o blog, para ajudar a esclarecer quem, assim como o meu colega, está entrando no universo das comunidades on line pela primeira vez. As reflexões – lógico! – servem também para quem já é “rato de internet”. Ao menos para mim, é sempre bom refletir sobre a nossa cultura pós-contemporânea e em permanente conexão. Aproveitem as lições!

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**A comunicação convergente e os mitos da nova tecnologia

*Gustavo Schor

Redes sociais não existem. Ou, melhor, existem desde sempre. Pelo menos desde que os primeiros australopitecos estabeleceram relações afetivas e conseguiram demonstrar isso de maneira objetiva, segundo códigos que puderam ser apreendidos pelo grupo e reproduzidos sistematicamente. Talvez mesmo antes, o “elo perdido”  já pudesse interagir – racionalmente – com os de sua espécie e com outras entidades do mundo físico.

O que não há é o advento da “rede social” enquanto decorrência do avanço tecnológico, das plataformas de troca de dados por meio dos sistemas digitais online. Esta definição, que internacionalmente consagrou o fenômeno dos espaços virtuais agregadores de pessoas (ou perfis) e que proporcionam a interação remota entre elas, é nada mais do que o exercício da capacidade humana do relacionamento, só que agora em um novo terreno midiático.

Claro que o Twitter, o Facebook, o Orkut e similares só foram possíveis por conta do amadurecimento tecnológico dos meios de comunicação. Mas o fato é que este avanço configurado no aumento do espectro de possibilidades gerado pela internet não é um acontecimento social – no sentido de exprimir o significado sociológico de relacionamento – mas simplesmente um amplificador de uma característica inerente aos seres humanos: comunicar e estabelecer relações de reciprocidade entre si e com as coisas do mundo.

Chamar estas plataformas de comunicação de “redes sociais” é, portanto, um pouco de exagero. Sem dúvida elas se prestam ao que trazem na nomenclatura, proporcionar o relacionamento entre pessoas. Mas não são, definitivamente, redes sociais: são, sim, espaços virtuais para o interação daqueles que utilizam tais meios como forma de encontrar outros membros do mesmo serviço. Ou seja, são mais um ambiente para colocar em prática o desenrolar, a evolução e constante modificação dos embates psicossociais dos integrantes destas redes – que não são tecnológicas, mas humanas.

E esta interação acontece nestes espaços, assim como acontece na rua, em supermercados, nas escolas, no trabalho. A internet criou apenas mais um palco para que pessoas encontrem outras. Certamente este novo campo tem suas especificidades e regras que permitem a ordenação semântica das mensagens trocadas e do relacionamento ali travado. Mas o mesmo acontece com todos os outros espaços da prática social.

No trânsito, por exemplo, precisamos interpretar um farol vermelho como o comando para parar; na internet, em algumas destas plataformas mencionadas, se eu não clicar em “adicionar contato”, não será possível dizer “oi” para a pessoa com quem quero me comunicar. Se não parar ao sinal vermelho, posso causar um acidente ou então receber uma multa; se enviar uma mensagem a um membro do Orkut sem adicioná-lo como contato e sem ter a certeza de que “tenho este direito”, posso ser ignorado ou até bloqueado por aquele a quem endereço a mensagem.

Existem milhares de possibilidades em um e outro sistema. O ponto é que cada um deles tem seus mecanismos de interação predeterminados. E todos que compartilham daqueles modelos devem seguir as respectivas estruturas de significação a fim de que seja possível a interação entre os membros.

O nome do meio, todavia, pouco importa. Chamar o Twitter de “rede social” não interfere na finalidade ou nas conseqüências de seu uso. Este exercício retórico, no entanto, se presta a uma análise mais cautelosa dos mitos que permeiam o estabelecimento das plataformas de comunicação e seu estudo.

A primeira conclusão a que se pode chegar é que as tais redes sociais não são em si um índice de evolução tecnológica (embora dependam dela, assim como dependeram todas os outros artefatos que suportam a comunicação, como o telégrafo e o telefone). São, em verdade, um item importante que denota a evolução dos mecanismos de comunicação.

O avanço da tecnologia proporciona a criação de novos braços, de novos tentáculos para a interação humana e amplificam imensamente a capacidade de profusão e absorção de informação. E seu o impacto não é sobre a tecnologia, mas sobre as estruturas de comunicação.

Em seu livro Cultura da Convergência, Henry Jenkins descreve de maneira muito didática e instigante este fenômeno. Seu argumento principal se baseia no rompimento de uma dos mais importantes lendas que circundam o progresso tecnológico, que é o das novas plataformas de comunicação suplantando as antigas. Jenkins tem uma visão absolutamente pluralista e propõe que, diferente das profecias da extinção dos meios, o que deve acontecer é a convergência multimidiática dos mecanismos. Daí, conforme seu raciocínio, o estabelecimento de novos paradigmas de comunicação e a reinvenção dos suportes de mídia de maneira complementar e proporcionando novas significações técnicas e socioculturais.

Ou seja, ele entende que a televisão não vai acabar por conta da internet, assim como a internet não vai inventar um novo modelo de comunicação em vídeo: o acoplamento das duas propostas vai criar uma terceira via, com a possibilidade de novas ferramentas e de mecanismos de interatividade. E isso, por sua vez, deve reconfigurar a maneira pela qual as pessoas se apropriam da comunicação em vídeo, vai determinar um novo modelo de raciocínio comunicacional e que, por fim, vai gerar impactos na economia, na arte, nos modos de consumo e no relacionamento entre pessoas e o mundo como um todo.

Como explica Jenkins, “a convergência das mídias é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A convergência altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos. A convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento.”

Na apresentação do mesmo livro, o produtor Mark Warshaw nos traz outra reflexão sobre a mudança de paradigma no consumo de informação e entretenimento. E ironiza o discurso apocalíptico dos entusiastas das tecnologias midiáticas (aqueles que entendem o avanço da mídia enquanto tecnologia, não como fenômeno determinante das relações sociais): “O comercial de 30 segundos morreu. A indústria fonográfica morreu. As crianças não assistem mais à televisão. As velhas mídias estão na UTI. Mas a verdade é que continuam produzindo música, continuam veiculando o comercial de 30 segundos, um novo lote de programas de TV está prestes a estrear, no momento em que escrevo estas linhas – muitos direcionados a adolescentes. As velhas mídias não morreram. Nossa relação com elas é que morreu. Estamos numa época de grandes transformações, e todos nós temos três opções: temê-las, ignorá-las ou aceitá-las.”

O interessante da observação de Jenkins é a paulatina reinvenção dos meios. Ele fundamenta seu raciocínio na relação entre três conceitos basais da comunicação contemporânea, que pautam toda a avaliação sobre os casos práticos apresentados em sua obra: a convergência dos meios, a cultura participativa e a inteligência coletiva.

Por convergência das mídias, Jenkins toma a expressão da informação em múltiplos suportes. Ele dá um exemplo bastante pitoresco: a associação de Osama Bin Laden com um personagem de Vila Sésamo, decorrente da brincadeira de um jovem norte-americano. A montagem feita pelo adolescente percorreu o mundo em diversos formatos e com diferentes finalidades. Foi descoberta na internet por um militante islâmico que, sem conhecer o verdadeiro sentido da brincadeira e mesmo o tal personagem da TV, estampou a imagem criada pelo americano em faixas de protesto. Tais cartazes foram filmados pela CNN e voltaram ao ocidente em forma de matéria jornalística transmitida pela televisão. Os criadores da série Vila Sésamo execraram a ligação indevida do personagem com o terrorista e ameaçaram entrar na justiça (sabe-se lá contra quem).

Cultura participativa, conforme o professor Jenkins, é a interação dos atores sociais envolvidos no processo de comunicação, como emissores e receptores das mensagens e atuando em papeis distintos, em diferentes situações – e variando esta atuação indefinidamente tanto quanto assumem diferentes papeis sociais. É o caso de um executivo de uma empresa, que em determinado momento é telespectador, noutro, formador de opinião, num terceiro, pai de família e que interage com a professora de seus filhos numa reunião escolar. Esta professora também é mãe, tem seus filhos na mesma escola (e são colegas dos filhos do executivo), e consumidora crítica, quando, em dado momento, posta na internet comentários sobre um produto que, por acaso, é a marca líder da empresa na qual o pai de seu aluno é diretor de marketing.

Finalmente, se apropria do termo “inteligência coletiva”, cunhado pelo teórico francês Pierre Levy, para definir a malha amorfa de informação e conhecimento que é resultado da confluência do pensamento e da participação de muitas pessoas, em ambientes diversos e com propósitos não necessariamente relacionados. É o grande “banco de dados” coletivo que possibilita o armazenamento e a troca de informação infinita sobre qualquer tema em qualquer lugar. Ele explica que isso acontece porque ninguém pode saber tudo: cada um de nós sabe alguma coisa. Juntando-se estas peças temos a inteligência coletiva. A internet é o advento da comunicação capaz de elevar este sentido a sua milésima potência.

Unindo-se o tripé proposto por Jenkins, temos as bases da comunicação de hoje, num mundo guiado pela renovação infinita dos meios e dos conceitos. E aqui volto ao assunto das redes sociais. Não seriam elas muito mais mecanismos convergentes de interação do que propriamente redes? As ditas redes sociais, na verdade, são alguns dos alicerces que sustentam este novo modelo de comunicação.

Os Twitters, Facebooks e Orkuts, são, sim, as expressões mais nítidas e propositoras da realidade mais atual da convergência midiática. É aí que está a beleza e a riquíssima contribuição destas plataformas: ser o ambiente que proporciona o relacionamento humano em perspectiva multimídia, com a possibilidade de criação e reconfiguração dos discursos e da própria cultura num plano mediado em constante transformação. É o espaço da revisita, da releitura, da paráfrase de si e dos outros e o resultado da ação de muitas mãos.

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*Gustavo Schor é gerente de Comunicação do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, é jornalista formado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, especialista em Jornalismo Econômico pelo Departamento de Ciência Política da Universidade de Brasília e pós-graduando em Gestão Integrada da Comunicação Digital pelo Núcleo Digicorp da ECA/USP. Trabalha com meios online desde a primeira grande bolha da internet, no final da década de 90, com atuações em Agência Estado, Terra, UOL, Reuters e outros veículos da imprensa digital.

**Texto encaminhado ao blog para publicação pela Cia da Informação.

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Artigo: Reflexões sobre a ausência de privacidade

*Texto e reflexões de Andreia Santana

O espelho reflete, na maioria das vezes, o que queremos ver. Enquanto uma fotografia revela nossos ângulos bons e ruins (ao menos antes do advento do photoshop)

Faz tempo que reflito sobre privacidade e o ato de manter a própria vida longe da curiosidade alheia. Com tantas formas de interação disponíveis na internet, tais como o Orkut, facebook, MSN, twitter, comunidades disso e daquilo, sinto que a geração mais nova perdeu a referência do que seja vida privada, num sentido mais profundo da palavra. Não existe mais limite para o que pode ser compartilhado e o que não é de interesse de ninguém mais, a não ser da própria pessoa e de seu círculo mais próximo. Intimidade é artigo raro nesta rede de um milhão de amigos.

Não é uma novidade refletir sobre esse tema, visto que existe todo tipo de estudo sobre o assunto, dos mais sérios aos sensacionalistas. E nem considero hipocrisia também meter minha colher nesse angu, ainda mais que escrevo em blog, tenho twitter, Orkut, facebook, MSN e ainda integro uma rede de bibliófilos, a Skoob, que reúne colecionadores de livros e de leituras (escrevo sobre ela qualquer dia desses). Como usuária das ferramentas, membro das comunidades virtuais e como migrante digital por conta das 36 primaveras de vida, me considero no direito de opinar.

Não é para falar contra a tecnologia ou as novas formas de interação que estou aqui dividindo essa chuva de palavras com quem tiver paciência para ler até o final. Sabemos que o ser humano precisa se expressar. Está aí a arte, em todas as suas manifestações, do cinema a telenovela, do blog ao romance, da pintura a moda, para provar que interação é uma realidade tão antiga quanto o mundo. Os teóricos da comunicação, apesar de se esforçarem para soar “novidadeiros”, não criaram praticamente nenhum conceito novo. Nós, humanos, somos gregários e interativos desde sempre, só funcionamos em bando desde que o mundo é mundo, logo, qualquer ferramenta ou forma de expressão que nos ajude a manter a ideia de comunidade é sempre bem-vinda. Mas, houve um tempo em que mesmo em bando, reservávamos um espaço doméstico e quase sagrado, onde a solidão não era temida, onde a alegria e a tristeza eram divididas apenas com pessoas da maior confiança. Onde o isolamento favorecia a reflexão. Ultimamente, somos papagaios: falamos, reproduzimos outras falas, fazemos um barulho imenso, mas pouco do que é dito importa de fato. Temos medo de ficar sozinhos e em bando, nem sempre dá para refletir.

Interagir com o resto do bando faz parte da natureza humana, mas ultimamente, dizemos muito, só que com pouco significado. A foto é da capa do LP Listen Without Prejudice, de George Michael

Minha inquietação é com a incapacidade cada vez maior das pessoas em perceber limites para a privacidade. A própria e a alheia. Fui criada de uma forma moderna, em alguns aspectos, e completamente antiquada, por exemplo, quando o tema é o respeito ao espaço do outro. Nunca tive permissão para dormir na casa de amigos quando era criança e nem tinha permissão para receber amiguinhos em casa para dormir. Os que vinham brincar, ou quando eu ia brincar na casa de alguém, era sempre na sala de visitas. Abrir a geladeira da casa de outra pessoa? Acredito que seja algo inconcebível para os membros da minha geração. Pelo menos para mim, só funciona se for na casa de  alguém muito próximo, onde me sinta tão à vontade que possa ajudar  na cozinha a lavar e secar a louça. Graças a Deus tenho amigas assim, quase irmãs de tão próximas. A intimidade é tão sagrada e necessária, que não pode e nem deve ser banalizada como tem sido atualmente.

Na minha infância, existia a sala de visitas, que era separada da sala de jantar e de outros cômodos “reservados” da casa, justamente para evitar que as pessoas fossem invadindo, enfiando-se no quarto, vasculhando guarda-roupas. Pelo menos creio que a ideia era essa, manter a visita confortável, acolhida, amada, mas sem deixar que ela se espalhasse por espaços que não lhe pertenciam. A menos que fosse íntima da família.

Depois de adulta, nunca me senti à vontade em abrir o armário de uma amiga, ou de permitir que uma das minhas amigas vasculhasse minha bolsa em busca do celular que estava tocando. Vi uma cena uma vez, ocorrida com uma amiga íntima. Um conhecido em comum nosso, mas sem o mesmo grau de intimidade, sem a menor cerimônia, atendeu o celular dela, depois abriu  a bolsa da minha amiga e jogou o aparelho lá dentro, diante do olhar atônito, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Hoje em dia, as crianças na sala de aula do meu filho, por exemplo, acham que é a coisa mais normal do mundo abrir as mochilas uns dos outros para pegar lápis, esquadros, borrachas ou o que quer que estejam precisando, sem ao menos pedir licença ao dono legitimo daquelas coisas. E estranham o fato dele não fazer o mesmo!

Falta espaço para reflexão em meio a esquizofrênica necessidade de expressão da contemporaneidade

Não abro a bolsa da minha mãe ou da minha irmã até hoje, nem a das amigas, a menos que elas permitam e ainda assim, só das muito íntimas. Quando preciso abrir as gavetas de mamãe para buscar alguma coisa me sinto como se invadisse um espaço que pertence a ela. Independente de ser minha mãe, ela tem direito a um espaço único e pessoal. Tento ensinar ao meu filho o mesmo conceito, de respeito à individualidade e à privacidade alheia. Só devemos ir até onde nos é permitido, sem forçar uma intimidade que na maioria das vezes não existe e até constrange o outro.

Outro exemplo, só para ilustrar e ajudar a aclarar as ideias: Não costumo acompanhar avidamente cada atualização de perfil do Orkut dos meus amigos. Tento manter o contato por esta ferramenta ou por outras, repito, não tenho nada contra às ferramentas de interação, mas sem exageros. As comunidades virtuais, quem usa sabe, são divertidas, práticas, facilitam manter proximidade mesmo com quem está distante, ajudam na troca de conhecimento e de ideias, mas ao menos para mim, seriam melhor aproveitadas sem a obsessão de saber o que todos fazem ou dizem a cada segundo do dia. Fico conhecendo melhor as pessoas por suas ideias do que, por exemplo, se estivesse xeretando para saber se estão com o status “namorando” ou “solteiro” ativado.

Acredito que a interação atual – a forma como ela é usada – cria um falso sentimento de intimidade. Tão descartável quanto boa parte da produção cultural caça-níqueis que infesta o mundo tanto real quanto o virtual. Ficamos sabendo se determinada pessoa é casada ou não, se gosta de laranja ou azul, se bebe ou fuma, se vai ao cinema ou se é do tipo baladeira, mas não ficamos sabendo como essa pessoa é de fato, o que ela sente, o que ela acredita. Contamos quantos namorados fulano teve em um ano, de acordo com as vezes em que fulano alterou seu status de relacionamento na internet, mas no que isso nos aproxima ou afasta mais de alguém?

Suspeitamos, melhor dizendo, supomos que fulano tem tal tipo de personalidade porque gosta de tal coisa, mas saber de fato como é alguém, acredito que não sabemos nem depois de anos de convivência. E sinceramente, para mim, é bom que seja assim, fica sempre uma margem de surpresa que, no mínimo, vale para manter o interesse pelo outro. Um pouco de mistério sempre seduz. Não quero saber todos os segredos dos meus amigos, eles têm direito a manter guardadas coisas que não querem mostrar para ninguém. Não me sinto menos amiga por isso. Antes até, crio um laço invisível, como se nos aproximássemos mais pelo que não é dito do que pelo que está exposto para todo mundo ver.

Querem ver outra coisa que me incomoda nessa falta de privacidade generalizada? É quando as pessoas te cobram para manter o twitter 24 horas por dia com novidades. Um post a cada minuto, de preferência. Começam a te seguir numa espécie de desespero e frenesi e quando você não corresponde à velocidade de atualização, param de te seguir e vão atrás de outra pessoa mais “interessante” (?) Tudo bem, a ideia da ferramenta é comunicação instantânea, mas será que vale a pena dizer alguma coisa apenas por dizer, apenas para manter a legião de seguidores? Será que todo ávido seguidor lê mesmo o que o outro está tentando dizer naqueles módicos e telegráficos 140 caracteres? Não costumo blogar se não tiver algo interessante para publicar, seja escrito por mim ou por terceiros. Ou me sinto inclinada a dividir algo que realmente valha a pena ou guardo silêncio. E o conceito de silêncio, tanto no ambiente virtual quanto fora da rede, tem mais nuances do que simplesmente ausência de ruído. Guardar silêncio, quando não se tem nada que valha a pena ser dito, é uma atitude sábia e respeitosa com os demais.

O Grande Irmão, personagem onipresente é criação do escritor George Orwell no romance 1984. Vigilância constante sobre todos os invíduos

Voltando à questão da privacidade. O exemplo que a meninada segue com cada vez mais freqüência é o das celebridades que expõem as conquistas e as mazelas com o mesmo empenho em todo tipo de revista, algumas com linha editorial duvidosa. Nada mais é segredo, nada mais é pessoal, tudo é compartilhado e coletivo. A dor de alguém tem de ser a dor de muitos, a felicidade de alguém tem de ser a felicidade de muitos. Se uma pessoa é legal e é artista, tem de virar modelo de comportamento e namoradinha do Brasil. Se comete um erro e é também artista, a queda na lama e a redenção precisam ser públicas. Mas, atualmente, nem precisa ser celebridade, de fato ou instantânea, para fazer da vida um “livro aberto”. Qualquer pessoa expõe mais do que seria recomendado, apenas pelo prazer de expor ou pela necessidade de saciar a doentia curiosidade de quem lê. Nem os mortos podem ser chorados em casa, porque seus perfis permanecem eternamente cultuados como numa seita fanática, assombrando orkuts e facebooks. Pessoalmente, acho de uma morbidez assustadora.

 

A sociedade torna-se pouco a pouco tão sem identidade pessoal quanto as abelhas operárias de uma colmeia. Fala-se em diversidade, mas vejo uma homogênea massa de pessoas idênticas querendo parecer diferentes

Perdemos a identidade de individuo e vivemos a era da identidade de grupo. Angustia-me essa superexposição e a patrulha de ideias que advém de tanto interesse na vida uns dos outros. É como se vivêssemos em eterno estado de big brother (falo daquele de George Orwell e seu emblemático livro 1984 e não do programa do Pedro Bial, que aliás, fabrica celebridades instantâneas e nada discretas).

Outro dia, conversando com minha irmã, ela questionou qual é o sentido, por exemplo, de alguém se preocupar tanto com a opção ou orientação sexual de outra pessoa? Comentávamos uma reportagem que vimos, mais uma da série “fulano saiu do armário”. Para mim, tanto faz se saiu ou entrou. Pessoalmente, me interesso mais pelo caráter das pessoas do que em saber com quem elas dormem. Gostaria que os movimentos que elegem seus símbolos dessem ao escolhido o direito de optar se querem mesmo tornar-se símbolo desta ou daquela militância. Se quer virar mito e inspirar outras pessoas, incentivar ou fortacelecer o movimento, ótimo, vá lá e diga para todo mundo que escancarou a porta do armário. Mas se não quer dividir seu armário com mais ninguém, beleza também, respeito você do mesmo jeito. A cobrança para que a pessoa faça isso ou aquilo, diga isto ou aquilo, é que me tira do sério. Se a estrelinha da tv quiser manter-se virgem até casar ou se já deu para o prédio inteiro onde mora, o que é que eu tenho com isso?

Tornar a vida um grande acontecimento público é cansativo e é uma armadilha. Além de ser fake. Soa falso pelo simples fato de que ao nos mostrarmos para os outros, conscientemente, buscamos sempre exibir nosso lado mais gente boa e tendemos a esconder o chamado dark side. A falta de privacidade cria uma sociedade de espelhos de narciso. Já repararam que somos sempre mais bonitos no espelho do que numa fotografia, por exemplo? Aprendi esse conceito nos tempos da faculdade. É o seguinte, relembrando as aulas do meu velho mestre: isso acontece porque o espelho nos reflete tal qual nos imaginamos, o espelho mostra o que queremos ver, e a fotografia nos mostra tal qual somos de fato, com nossos ângulos bons e ruins.

Só que agora existe o photoshop para dar uma melhorada no que a fotografia mostra e a fotografia se converte cada vez mais em espelho.

Nem é a essência das coisas que eu busco, porque acredito que as coisas tem mais de uma essência. Na verdade, todas as coisas são formadas pela mistura dessas infinitas essências. Ainda bem, porque ansiar por pureza me lembra nazismo. Deus me livre!

Confesso é que ando em busca de um pouco de retorno ao individuo, sinto falta do ser humano, único, pessoal, intransferível, secreto, privado, íntimo. Mas tudo o que vejo é sempre multidão…

*Andreia Santana, 37 anos, jornalista, natural de Salvador e aspirante a escritora. Fundou o blog Conversa de Menina em dezembro de 2008, junto com Alane Virgínia, e deixou o projeto em 20/09/2011, para dedicar-se aos projetos pessoais em literatura.

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