Mais mulheres refletindo sobre o machismo – e o racismo – subliminares

*Texto e reflexões de Andreia Santana

Publiquei recentemente lá no meu blog pessoal, o Mar de Histórias, uma resenha sobre a biografia de Lélia Gonzalez, lançada pelo Selo Negro Editorial. Na obra, os autores, Alex Ratts e Flavia Mateus Rios, reconstituem a vida da militância acadêmica, política e social dessa intelectual negra brasileira muito atuante entre os anos 70 e 90, co-fundadora do Movimento Negro Unificado, feminista, politizada, mas com uma capacidade ímpar de manter o foco no ser humano e nos seus paradoxos, sobretudo nas questões raciais (aqui vocês leem a resenha e ficam sabendo mais sobre o livro).

Lélia Gonzalez

Essa semana, pelas estatísticas do Google, vi que um texto meu, escrito em março de 2009 aqui no Conversa, relembrando bell hooks e minhas aulas como ex-aluna especial do mestrado em Letras na UFBA, foi citado por uma blogueira carioca, ex-aluna do famoso colégio Pedro II e bacharel em História, autora do blog …ou barbárie, uma mistura de diário pessoal e acadêmico que ainda estou explorando, mas que à primeira vista, agradou pela força das palavras da autora. A blogueira, num texto sobre a nova campanha publicitária da cerveja Devassa, que viu numa revista carioca, refletia sobre a redução das mulheres, sobretudo às negras, ao corpo (aqui vocês leem o post dela).

Qual a relação de uma coisa com a outra? Bem, é que lendo a biografia da Lélia, vi que muito do que ela refletia – dos paradoxos da questão racial brasileira – tem muita ligação com o texto da autora de …ou barbárie. Sendo que, como Lélia morreu há 16 anos (em 1994), a sensação de que pouca coisa mudou de lá para cá me frustra. Ao mesmo tempo, ver uma pessoa muito mais jovem manter tanto as ideias de Lélia quanto as de bell hooks vivas e sendo discutidas, dá o conforto de acreditar que ainda resta esperança e que campanhas publicitárias machistas e reducionistas como a dessa marca de cerveja tem sobrevida contada…e o tempo está acabando.

bell hooks

Fiz um teste. Busquei no Google referências a “campanha da cerveja Devassa”. Surgiram dezenas de links para uma polêmica envolvendo peça estrelada pela socialite norte-americana Paris Hilton, em março deste ano. Nenhuma referência a uma possível polêmica sobre a campanha denunciada pelo …ou barbárie agora em dezembro. A peça publicitária com Paris, “Bem Loura”, entrou fácil na mira do Conar (ao menos segundo reportagem publicada aqui no site de O Globo). Na campanha nova, a que ainda não está na mira dos órgãos reguladores da propaganda no país, uma modelo negra, com o estereótipo da “mulata Sargenteli”, aparece em pose sensual. Logo abaixo, a frase: “é pelo corpo que se reconhece a verdadeira negra”.

Paris Hilton em campanha da "Bem Loura"

Acredito que o bom entendedor não precisaria mais do que as meias-palavras do parágrafo acima. Mas em se tratando de machismo e de racismo, meias-palavras nunca bastam. O machismo atinge todas as mulheres, é fato, independente da cor da pele, da grossura do fio do cabelo, da conta bancária. E para manifestar-se, independe de gênero e orientação sexual. Lógico que, aquelas mulheres mais bem nascidas podem sentir menos os efeitos do machismo – fruto de toda uma construção ideológica e cultural de no mínimo dois mil anos -, porque possuem outros mecanismos de defesa. Mas prova de que o machismo é universal é a polêmica envolvendo a loirissima e riquíssima herdeira da cadeia de hoteis Hilton. E por favor, quem quiser tentar me convencer de que a foto acima não é machista, poupe o trabalho, porque como dizia a boa e velha Lélia, minha cabeça já está feita para a questão da relação masculina com o corpo feminino.

Mas, o racismo, esse manifesta-se majoritariamente tendo como alvo as mulheres negras e os estereótipos tão arraigados que se construíram a partir da redução do negro ao corpo. A autora de …ou barbárie filosofa sobre essa questão tendo por base estudos de mulheres como bell hooks e Lélia Gonzalez. Não digo com isso que mulheres índias não sofram preconceito (e é sempre bom lembrar que os portugueses chamavam aos índios de “negros da terra” durante a colonização). Resumo da ópera: o machismo e o racismo vão atuar juntos quando falarmos de mulheres não-brancas.

Reprodução da campanha da Devassa publicada em revista de grande circulação. A imagem é do blog ...ou barbárie

Lélia Gonzalez, que mesmo sendo feminista tinha uma leitura crítica do movimento, costumava sempre lembrar que a questão da mulher negra demorou para ser percebida pelas feministas não-negras. Isso porque, é muito fácil defender bandeiras pelos direitos das mulheres, mas a coisa se complica por exemplo quando a mesma mulher feminista mantém na cozinha de sua casa uma mulher negra que, só pela condição social mais baixa já está sofrendo opressão e nesse caso, não só masculina, mas da patroa branca também. É paradoxal e só agora tanto os movimentos feministas quanto aqueles de militância em prol da causa negra começam a acordar para a situação.

A questão é que o racismo tem nuances muito mais sutis do que o machismo, ao menos no Brasil. Por aqui, graças a nossa herança ibérica, sabemos bem que o homem brasileiro – ampliando as fronteiras – o homem latino – é machista na essência. Em maior ou menor grau, variando desde o agressor de mulheres até o carinha descolado que diz ter muitas amigas, mas empomba com “coisinhas” como o tamanho da saia da namorada ou o fato dela querer andar com os cabelos cortados a la joãozinho, “porque mulher para ser mulher precisa ter madeixas de madalena”. Ou então, que apesar de defender o comportamento liberal das mulheres em relação ao sexo, não se furta a jogar pedra nas elisas e geyses da vida. Sendo que aqui nesse setor: o das “vagabundas x moças de respeito”, o machismo também é feminino.

Sargenteli e as mulatas

Com o racismo, a sutiliza ocorre porque quando não é abertamente praticado por entidades que rezam na cartilha da ku klux klan, ele se manifesta veladamente na política de “democracia racial feliz e contente” vendida pelos órgãos de turismo como ideal de Brasil, herança do Estado Novo. Sob o mito da democracia racial, defendem alguns estudiosos da questão no país, esconde-se uma política de anulamento – ou atenuação – da negritude. A “morena brasileira” é sinônimo de mulher caliente, gostosona, permissiva e não-100% negra, leia-se, não inferiorizada. Outros estudiosos mostram o lado oculto da moeda, que a democracia racial que “amorena” o Brasil, também pratica a aniquilação – ou atenuação – da branquitude. Com certeza toda moeda tem dois lados e toda questão tem centenas, mas aqui falamos de opressão e sabemos que no nosso país, quanto mais tinta na pele, maior o grau dela. Os mestiços, como eu mesma, ficamos no centro da fogueira e tentamos encontrar nosso lugar entre dois mundos em colisão. E aqui, vale lembrar, embora o foco do post sejam as mulheres, os homens negros também sofrem tanto o preconceito quanto a redução de sua essência ao corpo e ao mito do negão bem dotado e fogoso. Sem contudo, deixar de ser machista e de em nome da supremacia do macho, oprimir as mulheres negras. Já viram que é tema pra muita conversa não é?

Tia Anastácia e a patroa, dona Benta

Mas, o que quero dizer com este post enorme é que essas questões raciais e de sexo permeiam, via discursos subliminares e entrelinhas, campanhas publicitárias como essa da cerveja, em que tanto a figura da mulher (do feminino) quanto a da negra são reduzidas ao corpo e ao instinto sexual (a serpente do paraíso, aquela que tenta Eva e que leva Adão a perder o juízo). O senso comum acaba deixando de refletir a respeito das propagandas, das novelas, da complexidade de relações entre a patroa e a empregada, porque dá muito trabalho cavar fundo sob tantas camadas, então, a educação formal e aquela recebida em casa, na rua, na comunidade, continuam disseminando esses discursos velados.

Mas, é preciso cavar e debater todos os ângulos desse prisma, esmiuçar e compreender, porque só assim, quando, como dizem os militantes, houver uma “tomada de consciência coletiva”, é que poderemos finalmente usar tanto a bandeira de democracia racial (num país que aceita todas as cores e que não tenta diluir) quanto de gênero (numa aceitação não apenas do macho e fêmea normativos, mas das orientações sexuais que fogem à regra). Folgo em saber que mais gente, como essa blogueira do …ou barbárie, mantém a chama do debate permanentemente acesa.

*Andreia Santana, 37 anos, jornalista, natural de Salvador e aspirante a escritora. Fundou o blog Conversa de Menina em dezembro de 2008, junto com Alane Virgínia, e deixou o projeto em 20/09/2011, para dedicar-se aos projetos pessoais em literatura.

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Mulher fruta: É para chupar e cuspir o bagaço?

*Texto e reflexões de Andreia Santana

Segunda-feira de Carnaval. Um espetáculo me impressiona profundamente. Sobre um trio elétrico, uma moça, necessário dizer que é afrodescendente, completamente nua, sem tapa sexo ou aquelas lantejoulas sobre o bico dos seios, requebra ao som de um pagode cuja letra diz nada menos que “rala a xana no alfalto”. Ela desce até o chão, como pede o pagode, para a lascívia dos cantores da banda e dos foliões.

deusa-do-ebano_blogMesma noite de segunda-feira de Carnaval. Documentário na TVE-BA mostra o processo de eleição da rainha do bloco afro Ilê Aiyê, entremeando com cenas da rainha eleita desfilando sobre o trio do Ilê, naquele momento, no Campo Grande, um dos circuitos mais antigos do carnaval baiano. Bela, vestida em tecidos coloridos, as amarrações do torço sobre o cabelo, a beleza de um decote apenas insinuado mostra um colo de ébano ornado de colares. É uma entidade, a deusa da beleza negra dança e também prende a atenção dos foliões, com sua sensualidade inerente à mulher, com sua delicadeza de soberana.

Com as duas cenas na cabeça, uma de desvalorização e violência contra a mulher e outra de homenagem e respeito, recorro a bell hooks, a intelectual negra norte-americana, cujos estudos sobre gênero, etnia e sexualidade tanto me esclarecem (prometo falar sobre bell hooks em outro post), tanto me ajudam a entender o contexto da sociedade onde vivo. O Brasil e a Bahia, miscigenados ambos, com status de grande democracia racial, precisam aprender a ler bell hooks e rever seus conceitos e principalmente, seus preconceitos velados e disfarçados em discursos como o mito da baianidade e da sensualidade da mulher tropical.

Enquanto assisto a moça nua requebrando ao som do pagode, um amigo, que não concorda com meu comentário sobre o fato daquela moça estar sofrendo uma violência na sua feminilidade, me questionou se é meu desejo que o Carnaval acabe. A resposta, dada com um certo atraso, é simples: para quem gosta, o carnaval deve continuar existindo, principalmente se a festa é também o palco onde desfila a majestosa rainha do Ilê, em toda a sua graça e consciência. Mas, para o Carnaval existir, não é necessário que uma mulher se submeta, seduzida com a promessa de fama, “a ralar a xana no asfalto”.

alek-wek-2_blogPois é justamente aí que repousa a minha tese de que a dançarina de pagode foi violentada nesse Carnaval, na consciência, na auto-estima, no seu encanto de mulher, tornado tão banal, descartável, para consumo rápido como um fast food. E me questiono, para que servem as mulheres fruta? Para chupar e cuspir o bagaço? Não acredito que a dançarina seja uma inocente coitada, forçada na base do chicote a subir no trio, tirar a roupa e simular o ato sexual em público. Mas creio que o senso crítico foi negado a essa moça, provavelmente pobre, visivelmente negra, quase com 100% de certeza, ansiosa em tornar-se uma celebridade e fugir da miséria, revivendo o conto da cinderela.

“A cultura de massas é a que declara publicamente e perpetua a ideia de que pode ser prazeroso reconhecer e desfrutar as diferenças raciais. Converter o outro em mercadoria tem tido muito êxito porque se oferece como um novo deleite, mais intenso e mais satisfatório que os modos comuns de fazer e sentir…A etnicidade se converte em especiaria, condimento que pode animar o prato insosso que é a cultura branca dominante”.

O trecho acima, do texto Devorar ao outro: desejo e resistência, de bell hooks, me dá no que pensar e é a base que eu buscava para continuar analisando a questão das mulheres fruta e das dançarinas de pagode, que antigamente requebravam em mini-shorts; mas, como o freak e o grotesco garantem mais audiência, agora abrem mão da pouca roupa que usavam e de restos de dignidade. E passo a comparar com a realidade local. No tédio do axé, em que músicas e cantoras se parecem -, principalmente porque para a massa, as cantoras são inacessíveis enquanto objeto de desejo -, as dançarinas de bunda grande, seios fartos e pubis à mostra suprem a lacuna, pois são objetos mais à mão.

alek-wek-_-blog1A celebridade gostosa do camarote é manjá fino, se expõe apenas naquela revista cara. A dançarina da periferia, em busca de um lugar sob os holofotes, sem perspectiva real de vencer na vida porque lhe foi negada educação de qualidade, é mais acessível. Ela pode ser a descarada, a cachorra da letra da música, pode ralar no asfalto. Dessa forma, mantém-se a ordem social das coisas. O folião dá vazão ao seu desejo, demonizando a dançarina negra, colocando-a no lugar em que seu pensamento machista acredita que ela deva estar. Fruta barata na feira, come-se a polpa, cospe-se os caroços. O ideal de beleza feminina, de sensualidade sem permissividade, o ideal asséptico, o sexo limpo, ele guarda para a namorada. O olhar de desejo, mas sem invadir o espaço individual, fica para a cantora loira do trio.

O cruel de tudo isso é ouvir de um dos homens que assistiam a performance da moça sem roupa, que a dançarina está no trio, expondo-se, porque ela quer. Ele refuta minha tese de que trata-se de uma violência, porque acredita que ato violento é só aquele praticado sem o consentimento da vítima. Pois existem formas de violência tão veladas e cruéis quanto um tapa na cara. É a violência da exclusão social, da falta de um lugar na sociedade estratificada e com papéis definidos. Essa violência, a cultura da super valorização do corpo, a cultura do descartável estão por trás do desejo desmedido de enriquecer para fugir da pobreza; de ser adorada, de conquistar, nem que seja com a bunda, um lugar de destaque, um lugar de pertencimento.

deusa-do-ebano-2_blog1Costurando essa forma de exploração sexual travestida de “arte”, afinal, a dançarina se define como artista, está o medo atávico que os homens sentem da sexualidade feminina desde o tempo das cavernas. Somos multiorgasmicas, temos um gozo interno, somos mistério e isso assusta tanto que a melhor forma de lidar com a mulher, na nossa sociedade de herança cristã, é demonizá-la, definir a sexualidade feminina como baixo instinto, animalesco e grotesco. Infelizmente, ainda somos divididas entre safadas e não-safadas, cachorras e meninas de familia, pela maioria dos homens e das próprias mulheres também.

Ao começar este post comparei as duas cenas que me surpreenderam ontem, da dançarina nua e da rainha do Ilê Aiyê, justamente para mostrar que é possível honrar a beleza, a sensualidade, o carisma e a graça de uma mulher, sem expô-la na banca da feira. O que falta na jovem nua sobre o trio, submetida ao seu desejo cego de ser respeitada e querida como a modelo famosa, mas subjugada ao papel cruel de mercadoria que a sociedade estabeleceu para ela, sobra em consciência, em auto-estima, em feminilidade, em domínio da própria sexualidade na deusa no ébano.

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As meninas do Curuzu rejeitam o papel inferior em que lhes tentam enquadrar. Rejeitam serem vistas e consumidas como uma melancia. Elas são mulheres de verdade, donas de si, donas do próprio corpo. A sedução delas, dos seus movimentos ritmados, dos braços, das pernas e do requebro, não se presta ao espetáculo de pão, circo e carne. Antes, seus movimentos são de afirmação da beleza negra, da beleza feminina, do sagrado que faz de todas as mulheres, deusas da criação.

*Andreia Santana, 37 anos, jornalista, natural de Salvador e aspirante a escritora. Fundou o blog Conversa de Menina em dezembro de 2008, junto com Alane Virgínia, e deixou o projeto em 20/09/2011, para dedicar-se aos projetos pessoais em literatura.

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