Mulher fruta: É para chupar e cuspir o bagaço?

*Texto e reflexões de Andreia Santana

Segunda-feira de Carnaval. Um espetáculo me impressiona profundamente. Sobre um trio elétrico, uma moça, necessário dizer que é afrodescendente, completamente nua, sem tapa sexo ou aquelas lantejoulas sobre o bico dos seios, requebra ao som de um pagode cuja letra diz nada menos que “rala a xana no alfalto”. Ela desce até o chão, como pede o pagode, para a lascívia dos cantores da banda e dos foliões.

deusa-do-ebano_blogMesma noite de segunda-feira de Carnaval. Documentário na TVE-BA mostra o processo de eleição da rainha do bloco afro Ilê Aiyê, entremeando com cenas da rainha eleita desfilando sobre o trio do Ilê, naquele momento, no Campo Grande, um dos circuitos mais antigos do carnaval baiano. Bela, vestida em tecidos coloridos, as amarrações do torço sobre o cabelo, a beleza de um decote apenas insinuado mostra um colo de ébano ornado de colares. É uma entidade, a deusa da beleza negra dança e também prende a atenção dos foliões, com sua sensualidade inerente à mulher, com sua delicadeza de soberana.

Com as duas cenas na cabeça, uma de desvalorização e violência contra a mulher e outra de homenagem e respeito, recorro a bell hooks, a intelectual negra norte-americana, cujos estudos sobre gênero, etnia e sexualidade tanto me esclarecem (prometo falar sobre bell hooks em outro post), tanto me ajudam a entender o contexto da sociedade onde vivo. O Brasil e a Bahia, miscigenados ambos, com status de grande democracia racial, precisam aprender a ler bell hooks e rever seus conceitos e principalmente, seus preconceitos velados e disfarçados em discursos como o mito da baianidade e da sensualidade da mulher tropical.

Enquanto assisto a moça nua requebrando ao som do pagode, um amigo, que não concorda com meu comentário sobre o fato daquela moça estar sofrendo uma violência na sua feminilidade, me questionou se é meu desejo que o Carnaval acabe. A resposta, dada com um certo atraso, é simples: para quem gosta, o carnaval deve continuar existindo, principalmente se a festa é também o palco onde desfila a majestosa rainha do Ilê, em toda a sua graça e consciência. Mas, para o Carnaval existir, não é necessário que uma mulher se submeta, seduzida com a promessa de fama, “a ralar a xana no asfalto”.

alek-wek-2_blogPois é justamente aí que repousa a minha tese de que a dançarina de pagode foi violentada nesse Carnaval, na consciência, na auto-estima, no seu encanto de mulher, tornado tão banal, descartável, para consumo rápido como um fast food. E me questiono, para que servem as mulheres fruta? Para chupar e cuspir o bagaço? Não acredito que a dançarina seja uma inocente coitada, forçada na base do chicote a subir no trio, tirar a roupa e simular o ato sexual em público. Mas creio que o senso crítico foi negado a essa moça, provavelmente pobre, visivelmente negra, quase com 100% de certeza, ansiosa em tornar-se uma celebridade e fugir da miséria, revivendo o conto da cinderela.

“A cultura de massas é a que declara publicamente e perpetua a ideia de que pode ser prazeroso reconhecer e desfrutar as diferenças raciais. Converter o outro em mercadoria tem tido muito êxito porque se oferece como um novo deleite, mais intenso e mais satisfatório que os modos comuns de fazer e sentir…A etnicidade se converte em especiaria, condimento que pode animar o prato insosso que é a cultura branca dominante”.

O trecho acima, do texto Devorar ao outro: desejo e resistência, de bell hooks, me dá no que pensar e é a base que eu buscava para continuar analisando a questão das mulheres fruta e das dançarinas de pagode, que antigamente requebravam em mini-shorts; mas, como o freak e o grotesco garantem mais audiência, agora abrem mão da pouca roupa que usavam e de restos de dignidade. E passo a comparar com a realidade local. No tédio do axé, em que músicas e cantoras se parecem -, principalmente porque para a massa, as cantoras são inacessíveis enquanto objeto de desejo -, as dançarinas de bunda grande, seios fartos e pubis à mostra suprem a lacuna, pois são objetos mais à mão.

alek-wek-_-blog1A celebridade gostosa do camarote é manjá fino, se expõe apenas naquela revista cara. A dançarina da periferia, em busca de um lugar sob os holofotes, sem perspectiva real de vencer na vida porque lhe foi negada educação de qualidade, é mais acessível. Ela pode ser a descarada, a cachorra da letra da música, pode ralar no asfalto. Dessa forma, mantém-se a ordem social das coisas. O folião dá vazão ao seu desejo, demonizando a dançarina negra, colocando-a no lugar em que seu pensamento machista acredita que ela deva estar. Fruta barata na feira, come-se a polpa, cospe-se os caroços. O ideal de beleza feminina, de sensualidade sem permissividade, o ideal asséptico, o sexo limpo, ele guarda para a namorada. O olhar de desejo, mas sem invadir o espaço individual, fica para a cantora loira do trio.

O cruel de tudo isso é ouvir de um dos homens que assistiam a performance da moça sem roupa, que a dançarina está no trio, expondo-se, porque ela quer. Ele refuta minha tese de que trata-se de uma violência, porque acredita que ato violento é só aquele praticado sem o consentimento da vítima. Pois existem formas de violência tão veladas e cruéis quanto um tapa na cara. É a violência da exclusão social, da falta de um lugar na sociedade estratificada e com papéis definidos. Essa violência, a cultura da super valorização do corpo, a cultura do descartável estão por trás do desejo desmedido de enriquecer para fugir da pobreza; de ser adorada, de conquistar, nem que seja com a bunda, um lugar de destaque, um lugar de pertencimento.

deusa-do-ebano-2_blog1Costurando essa forma de exploração sexual travestida de “arte”, afinal, a dançarina se define como artista, está o medo atávico que os homens sentem da sexualidade feminina desde o tempo das cavernas. Somos multiorgasmicas, temos um gozo interno, somos mistério e isso assusta tanto que a melhor forma de lidar com a mulher, na nossa sociedade de herança cristã, é demonizá-la, definir a sexualidade feminina como baixo instinto, animalesco e grotesco. Infelizmente, ainda somos divididas entre safadas e não-safadas, cachorras e meninas de familia, pela maioria dos homens e das próprias mulheres também.

Ao começar este post comparei as duas cenas que me surpreenderam ontem, da dançarina nua e da rainha do Ilê Aiyê, justamente para mostrar que é possível honrar a beleza, a sensualidade, o carisma e a graça de uma mulher, sem expô-la na banca da feira. O que falta na jovem nua sobre o trio, submetida ao seu desejo cego de ser respeitada e querida como a modelo famosa, mas subjugada ao papel cruel de mercadoria que a sociedade estabeleceu para ela, sobra em consciência, em auto-estima, em feminilidade, em domínio da própria sexualidade na deusa no ébano.

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As meninas do Curuzu rejeitam o papel inferior em que lhes tentam enquadrar. Rejeitam serem vistas e consumidas como uma melancia. Elas são mulheres de verdade, donas de si, donas do próprio corpo. A sedução delas, dos seus movimentos ritmados, dos braços, das pernas e do requebro, não se presta ao espetáculo de pão, circo e carne. Antes, seus movimentos são de afirmação da beleza negra, da beleza feminina, do sagrado que faz de todas as mulheres, deusas da criação.

*Andreia Santana, 37 anos, jornalista, natural de Salvador e aspirante a escritora. Fundou o blog Conversa de Menina em dezembro de 2008, junto com Alane Virgínia, e deixou o projeto em 20/09/2011, para dedicar-se aos projetos pessoais em literatura.

16 comentários em “Mulher fruta: É para chupar e cuspir o bagaço?

  1. Texto perfeito. Concordo que a maior violência é a velada, subtendida, de compreensão ao alcance de poucos cujas responsabilidades ignoram; responsabilidade que é de todos e, principalmente, dos Meios que não se envergonham em exibir a depreciação da mulher em busca de audiência. Então penso na letra da música de Ataulfo Alves que diz “Laranja madura na beira da estrada tá bichada Zé ou tem marimbondo no pé”.

  2. O título do artigo assusta. Será que os homens continuam pensando assim? Infelizmente sim, porque algumas mulheres preferem ser tratadas como objeto e descartável, se ainda fosse objeto de estimação, menos mal. Isso é visível nas letras de algumas músicas, principalmente Funk e Brega. Um horror!

  3. Quézia,
    Você tem certeza que ser tratada como objeto de estimação é menos mal? Para mim, o paternalismo, tratar a mulher como uma coitadinha dependente, é tão ofensivo quanto tratá-la como mulher fruta. Ambas as formas de tratamento coisificam a mulher. Ou ela é o objeto para usar e jogar fora ou é uma coisinha delicada que deve ser cuidada e resguardada da cobiça alheia. A mim, prefiro apenas que tratem como um ser humano, com falhas e qualidades, mas como um ser humano e não como uma coisa de possuir, não sou um bem ou um patrimônio de alguém, sou uma pessoa. A ideia do titulo é mesmo assustar, chocar, dar aquela sacudida que nos coloca para refletir. Um abraço e obrigada por visitar o blog.

  4. Respeitosamente discordo da autora deste blog quanto à violência contra a mulher, e ainda que seja um agravante que a dançarina em questão seja negra.
    Acho que há uma percepção do carnaval como palco/balcão onde se pode iniciar uma carreira bem-sucedida que leve aos programas de auditório e capas de revista.
    Me preocupa sim, esse overdose de sexualidade exposta para as crianças verem na rua ou nas tardes de domingo na TV, o que mostra aos pequenos, coisas que eles poderiam ver e entender melhor quando mais velhos
    Mas nesse caso em questão não é a divulgação da sexualidade mas sim o livre-arbítrio da mulher, e como bem observa a autora, ela não é forçada a expor corpo, e sim o faz por opção porque é vantajoso para ela fazer isso. Dançarinas de bandas de axé medianas ganham muito mais do que a maioria das profissionais liberais ou funcionárias de empresas brasileiras. E quanto a dançarina do trio elétrico nua ser negra, quero lembrar que nessa profissão há também louras e morenas.
    Aproveito para dizer que apesar do sobrenome europeu, tenho sangue africano nas veias, fruto da mistura maravilhosa que é o Brasil.

  5. Oi Andre,
    Violência não é apenas física, existe uma forma de violência sutil, que até faz as pessoas acharem que são livres nas suas escolhas, quando na realidade, em boa parte do tempo, são condicionadas. Eu questiono isso no texto, se o fato da jovem da periferia apenas enxergar fama e dinheiro na exposição do corpo é de fato liberdade. Agradeço pela sua colaboração no debate, o importante é que as pessoas discordem “respeitosamente” como você faz. E assim, todos temos a chance de crescer com a opinião do outro. Um abraço!

  6. excelente post.. até coloquei no meu facebook.. assunto mais do q pertinente e necessário. Parabéns

  7. gostei muito do texto e compartilho a maior parte das suas opinioes. Discordo do Andre sobre a maravilhosidade da mistura de sangue africano que corre nas veias do povo brasileiro. Nao consigo ver nada de maravilhoso em uma mistura que, em grande parte, e fruto de estupros de mulheres negras pelos senhores de engenho.
    tambem vou dar uma divulgada no texto nos lugares que eu puder

    valeu demais

    1. Oi Abayomi,
      Essa questão que vc levantou é muito importante, a tão apregoada democracia racial brasileira, que não passa de mito, realmente teve início a partir de atos infames de violência contra a mulher. Um abraço e obrigada pelo empenho em divulgar o texto 🙂

  8. concordo!
    Agradeço por escrever sobre temas tão polêmicos e emergentes.
    Chega de violência!
    Eu sou da política contra a baixa autoestima.
    bjo.

  9. TIrar a roupa em espetáculo vale á pena se a pessoa que se apreseenta for admirada e aplaudida. Mas visto que os homens ridicularizam e falatm apenas jogar tomate, acho que não vale à pena.
    Eu custei a entender o que me minha mãe dizia: a mulher é quem tem que se valorizar. Significava que se dependesse dos homens ela nunca teria seu valor reconhecido. Eles não querem perder seu lugar de prestígio na sociedade patriarcal. Não querem perder o lugar de “superiores”. Não queiramos nós mulheres sermos superiores a nenhum ser em cima da terra. Mas queiramos nos engrandecer da nossa capacidade de reconhecer que as diferenças entre as pessoas fazem com que elas se complementem e se unam. Queiramos apenas que a nossa dignidade seja reconhecida. Que nossa fragilidade seja reconhecida, mas que a nossa força também assim seja. Tenho silenciosamente analisado a letra da música que fala: “mulher é igual a lata, um chuta os outros cata.” e pensado no quanto isso significa no subconsciente de quem embala na swingueira. Suponho que uma mulher pode mesmo se enganar e viver a vida crendo que ela não valor de nada. É só isso que receio. Não sou apegada a nenhum valor religioso que condene a sexualidade e portanto o valor moral que me leva a recusar as letras de músicas do pagode baiano é apenas uma preocupação com a auto estima da mulher. Não somos lixo. Não concordemos com isso. Senão isso pode até virar verdade.

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