“Lobo Mau”: um crime contra a ingenuidade infantil

Roubar a ingenuidade das crianças deveria ser crime. Hediondo. Inafiançável e com pena máxima, sem direito à liberdade condicional ou qualquer outro benefício, como a progressão de regime, por exemplo. Eu não levanto a bandeira contra o pagode baiano. Respeito os estilos musicais e danço o que toca. Não tenho CDs, não é um ritmo que toca no som do meu carro, mas eu vou a um show tranquilamente. E me divirto. Não vejo qualquer problema com o fato de cada um se divertir da forma que gosta. O que eu repudio são alguma letras que, por exemplo, abusam da nossa inteligência, ou, pior ainda, “coisificam” as mulheres. E minha revolta desta vez é por causa de uma música que está estourada aqui na nossa terrinha, e que brinca com a personagem da Chapeuzinho Vermelho, infelizmente intitulada “Lobo Mau”.

Eu bem sei, como muitos de vocês, que a fábula original da Chapeuzinho Vermelho é muito diferente daquela versão que contamos às nossas crianças. Aliás, muitos dos contos de fadas não foram originariamente escritos para os pequeninos. Ao longo do tempo acabaram ganhando adaptações direcionadas a auxiliar no crescimento e desenvolvimento deles, com direito a lições de moral no fim. No livro “Os 7 pecados capitais nos contos de fadas: como os contos de fadas influenciam nossas vidas”, de Sheldon Cashdan, o autor esclarece que as edições primárias nasceram como “entretenimento para adultos… e eram contadas em reuniões sociais, nas salas de fiar, nos campos e em outros ambientes onde os adultos se reuniam”. Era inclusive muito comum encontrar temas como erotismo, voyerismo e estupro nas entrelinhas dos escritos.

Lembro bem de uma das versões da história da Chapeuzinho, a de Charles Perrault, em que a menina fazia um streaptease para o Lobo Mau, além de comer a carne e beber o sangue da avó morta pelo animal. No final, acaba ao lado do lobo na cama e é comida por ele. Então, não vamos falar de ingenuidade literária aqui. A questão é que nossos pequenos ouvem as histórias de outro modo. Os livrinhos cheios de cores e desenhos da Chapeuzinho mostram a eles que eles não devem desobedecer a mamãe. Chapeuzinho se depara com o lobo, porque não seguiu as instruções de sua mãe e seguiu para a casa da vovó pela floresta. E lá estava o lobo, de “butuca”, seguindo seus passos. Na versão infantil, um caçador tira a vovó da barriga do bicho e também salva a menina.

Quando ouvi a letra da música a que me referi no início do post, fiquei bastante incomodada. A letra, em minha opinião, tem um apelo sexual muito forte. Mas o que mais me choca é a incitação nua e crua à pedofilia. Na música, o Lobo Mau é personificado. Mas a Chapeuzinho continua uma menina. Muitos de vocês podem pensar que eu estou “viajando na maionese”, que minhas observações são exageradas. Aí cabe a cada um refletir e tirar suas próprias conclusões sobre a polêmica, e eu respeitarei todas elas. Mas acho um verdadeiro absurdo brincar com a ingenuidade das crianças desta forma. A dança é erótica, a música toca o tempo inteiro, e ainda que você tenha o maior cuidado com o que seu filho, sobrinho, etc ouve, não dá para manter tudo sob controle. Entre quatro paredes, e entre adultos, aí sim, pode até valer tudo. Mas um mínimo de pudor público é essencial.

A ingenuidade é a coisa mais bonita que pode existir em uma criança. E me preocupa o fato de tratarmos isso com descaso e negligência. Não importa se os contos surgiram em um contexto em que tentava-se controlar o comportamento humano, principalmente o feminino. O cerne do problema discorrido neste texto é outro. É impossível desconsiderar essa nova função incorporada pelos contos de fada, de encher de ludicidade e de imaginação a vida das crianças. Até que alguém tem a “brilhante” ideia de jogar todo esse processo de reconstrução literária no lixo, apenas para tentar ganhar fama a partir da exploração e do apelo sexual envolvendo o universo das fábulas.

No Carnaval de Salvador, a música já virou polêmica. A intenção era ter publicado este post antes. Mas acabou sendo bom o atraso, afinal pudemos acompanhar a atitude dos artistas. Nos blocos infantis, nem sinal da tal canção. Carla Perez, que puxa o Algodão Doce, anunciou para todos os cantos que não cantaria a música. Que bom! Eliana e Tio Paulinho, que animam o Happy, não tomaram partido da discussão, mas também não entoaram a letra de mau gosto no circuito da Barra. Quanto aos astros e estrelas do axé, Ivete Sangalo, uma das musas do ritmo baiano, fez questão de fazer ecoar o refrão pelas ruas. Logo ela, que tem um público infantil tão forte. Pior, que fez um CD para crianças e acabou de colocar no mundo uma delas. Fico pensando por onde anda a assessoria da moça, que não fez qualquer observação a respeito  do assunto. Ou será que fez? Lamentável.

Aqui, deixo meu apelo. Vamos cultivar a ingenuidade infantil. A vida adulta já nos arranca esta mesma ingenuidade a fórceps. Não deixem que façam isso com nossas crianças. A música não destrói apenas a imagem da Chapeuzinho Vermelho, destrói, aos poucos, os sonhos infantis.

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Mulher fruta: É para chupar e cuspir o bagaço?

*Texto e reflexões de Andreia Santana

Segunda-feira de Carnaval. Um espetáculo me impressiona profundamente. Sobre um trio elétrico, uma moça, necessário dizer que é afrodescendente, completamente nua, sem tapa sexo ou aquelas lantejoulas sobre o bico dos seios, requebra ao som de um pagode cuja letra diz nada menos que “rala a xana no alfalto”. Ela desce até o chão, como pede o pagode, para a lascívia dos cantores da banda e dos foliões.

deusa-do-ebano_blogMesma noite de segunda-feira de Carnaval. Documentário na TVE-BA mostra o processo de eleição da rainha do bloco afro Ilê Aiyê, entremeando com cenas da rainha eleita desfilando sobre o trio do Ilê, naquele momento, no Campo Grande, um dos circuitos mais antigos do carnaval baiano. Bela, vestida em tecidos coloridos, as amarrações do torço sobre o cabelo, a beleza de um decote apenas insinuado mostra um colo de ébano ornado de colares. É uma entidade, a deusa da beleza negra dança e também prende a atenção dos foliões, com sua sensualidade inerente à mulher, com sua delicadeza de soberana.

Com as duas cenas na cabeça, uma de desvalorização e violência contra a mulher e outra de homenagem e respeito, recorro a bell hooks, a intelectual negra norte-americana, cujos estudos sobre gênero, etnia e sexualidade tanto me esclarecem (prometo falar sobre bell hooks em outro post), tanto me ajudam a entender o contexto da sociedade onde vivo. O Brasil e a Bahia, miscigenados ambos, com status de grande democracia racial, precisam aprender a ler bell hooks e rever seus conceitos e principalmente, seus preconceitos velados e disfarçados em discursos como o mito da baianidade e da sensualidade da mulher tropical.

Enquanto assisto a moça nua requebrando ao som do pagode, um amigo, que não concorda com meu comentário sobre o fato daquela moça estar sofrendo uma violência na sua feminilidade, me questionou se é meu desejo que o Carnaval acabe. A resposta, dada com um certo atraso, é simples: para quem gosta, o carnaval deve continuar existindo, principalmente se a festa é também o palco onde desfila a majestosa rainha do Ilê, em toda a sua graça e consciência. Mas, para o Carnaval existir, não é necessário que uma mulher se submeta, seduzida com a promessa de fama, “a ralar a xana no asfalto”.

alek-wek-2_blogPois é justamente aí que repousa a minha tese de que a dançarina de pagode foi violentada nesse Carnaval, na consciência, na auto-estima, no seu encanto de mulher, tornado tão banal, descartável, para consumo rápido como um fast food. E me questiono, para que servem as mulheres fruta? Para chupar e cuspir o bagaço? Não acredito que a dançarina seja uma inocente coitada, forçada na base do chicote a subir no trio, tirar a roupa e simular o ato sexual em público. Mas creio que o senso crítico foi negado a essa moça, provavelmente pobre, visivelmente negra, quase com 100% de certeza, ansiosa em tornar-se uma celebridade e fugir da miséria, revivendo o conto da cinderela.

“A cultura de massas é a que declara publicamente e perpetua a ideia de que pode ser prazeroso reconhecer e desfrutar as diferenças raciais. Converter o outro em mercadoria tem tido muito êxito porque se oferece como um novo deleite, mais intenso e mais satisfatório que os modos comuns de fazer e sentir…A etnicidade se converte em especiaria, condimento que pode animar o prato insosso que é a cultura branca dominante”.

O trecho acima, do texto Devorar ao outro: desejo e resistência, de bell hooks, me dá no que pensar e é a base que eu buscava para continuar analisando a questão das mulheres fruta e das dançarinas de pagode, que antigamente requebravam em mini-shorts; mas, como o freak e o grotesco garantem mais audiência, agora abrem mão da pouca roupa que usavam e de restos de dignidade. E passo a comparar com a realidade local. No tédio do axé, em que músicas e cantoras se parecem -, principalmente porque para a massa, as cantoras são inacessíveis enquanto objeto de desejo -, as dançarinas de bunda grande, seios fartos e pubis à mostra suprem a lacuna, pois são objetos mais à mão.

alek-wek-_-blog1A celebridade gostosa do camarote é manjá fino, se expõe apenas naquela revista cara. A dançarina da periferia, em busca de um lugar sob os holofotes, sem perspectiva real de vencer na vida porque lhe foi negada educação de qualidade, é mais acessível. Ela pode ser a descarada, a cachorra da letra da música, pode ralar no asfalto. Dessa forma, mantém-se a ordem social das coisas. O folião dá vazão ao seu desejo, demonizando a dançarina negra, colocando-a no lugar em que seu pensamento machista acredita que ela deva estar. Fruta barata na feira, come-se a polpa, cospe-se os caroços. O ideal de beleza feminina, de sensualidade sem permissividade, o ideal asséptico, o sexo limpo, ele guarda para a namorada. O olhar de desejo, mas sem invadir o espaço individual, fica para a cantora loira do trio.

O cruel de tudo isso é ouvir de um dos homens que assistiam a performance da moça sem roupa, que a dançarina está no trio, expondo-se, porque ela quer. Ele refuta minha tese de que trata-se de uma violência, porque acredita que ato violento é só aquele praticado sem o consentimento da vítima. Pois existem formas de violência tão veladas e cruéis quanto um tapa na cara. É a violência da exclusão social, da falta de um lugar na sociedade estratificada e com papéis definidos. Essa violência, a cultura da super valorização do corpo, a cultura do descartável estão por trás do desejo desmedido de enriquecer para fugir da pobreza; de ser adorada, de conquistar, nem que seja com a bunda, um lugar de destaque, um lugar de pertencimento.

deusa-do-ebano-2_blog1Costurando essa forma de exploração sexual travestida de “arte”, afinal, a dançarina se define como artista, está o medo atávico que os homens sentem da sexualidade feminina desde o tempo das cavernas. Somos multiorgasmicas, temos um gozo interno, somos mistério e isso assusta tanto que a melhor forma de lidar com a mulher, na nossa sociedade de herança cristã, é demonizá-la, definir a sexualidade feminina como baixo instinto, animalesco e grotesco. Infelizmente, ainda somos divididas entre safadas e não-safadas, cachorras e meninas de familia, pela maioria dos homens e das próprias mulheres também.

Ao começar este post comparei as duas cenas que me surpreenderam ontem, da dançarina nua e da rainha do Ilê Aiyê, justamente para mostrar que é possível honrar a beleza, a sensualidade, o carisma e a graça de uma mulher, sem expô-la na banca da feira. O que falta na jovem nua sobre o trio, submetida ao seu desejo cego de ser respeitada e querida como a modelo famosa, mas subjugada ao papel cruel de mercadoria que a sociedade estabeleceu para ela, sobra em consciência, em auto-estima, em feminilidade, em domínio da própria sexualidade na deusa no ébano.

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As meninas do Curuzu rejeitam o papel inferior em que lhes tentam enquadrar. Rejeitam serem vistas e consumidas como uma melancia. Elas são mulheres de verdade, donas de si, donas do próprio corpo. A sedução delas, dos seus movimentos ritmados, dos braços, das pernas e do requebro, não se presta ao espetáculo de pão, circo e carne. Antes, seus movimentos são de afirmação da beleza negra, da beleza feminina, do sagrado que faz de todas as mulheres, deusas da criação.

*Andreia Santana, 37 anos, jornalista, natural de Salvador e aspirante a escritora. Fundou o blog Conversa de Menina em dezembro de 2008, junto com Alane Virgínia, e deixou o projeto em 20/09/2011, para dedicar-se aos projetos pessoais em literatura.

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