A série sobre a II Guerra está chegando ao fim. Resta apenas um post para publicar, aquele que lista filmes e livros para quem tem interesse em aprofundar seus estudos sobre o conflito e suas consequências na contemporaneidade. Mas hoje, ao invés de concluir esse último episódio (no post abaixo vocês encontram os links de todas as reportagens da série), abrimos espaço aqui no blog para publicação de um artigo da jornalista e mestranda em letras, Rossane Lemos. Ela nos traz uma reflexão muito útil sobre a importância dos adultos ouvirem contos de fadas. Confiram, pois vale a pena.
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Os adultos merecem ouvir contos de fadas
Por Rossane Lemos*
Os Irmãos Grimm se dedicaram a registrar os contos da forma mais pura possível, recém-saída da boca do povo, em uma linguagem que se assemelha ao vocabulário das crianças. Os editores do livro Kinder – und HausMärchen[1] destacam que os autores:
Se afastaram da tendência de seus contemporâneos, de transformar os contos numa representação (Spiel), na qual se desencadeia um individualismo romântico: eles permanecem fiéis ao ritmo escutado, que perceberam na boca dos falantes do povo. Por isso os contos de Grimm têm este tom, da maior intimidade popular; por isso eles (os contos) têm o infantil dentro de si e se deixam contar com tanta naturalidade para as crianças. (GRIMM, vol. II, p. 589)
Entretanto, as histórias se deixam contar não apenas para as crianças. As histórias, os contos maravilhosos, de fadas, da carochinha entre tantos fazem parte da vida da maioria das pessoas: crianças ou adultos; que podem sonhar e entrar na magia dos contos de fadas embalados pela voz doce de alguém que acredita no poder da palavra.
Hans Cristian Andersen falou com as crianças com o coração. Os textos traduziam o sofrimento principalmente destas e reequilibravam as injustiças sociais na esfera do maravilhoso. Mas porque apenas as crianças precisam de palavras cuja essência fale ao coração? Quantos adultos sentem-se tal qual “O patinho feio”, “O soldadinho de chumbo”, “A pequena sereia”?
Com o avanço do racionalismo cientificista e tecnológico, os contos de fadas e as narrativas maravilhosas passam a ser vistos como ‘histórias para crianças’. Há um novo maravilhoso a atrair os homens: aquele que eles descobrem não só no próprio real (transformado pela máquina), mas também em si mesmos, ou melhor, no poder da inteligência humana. (COELHO, 2000, p. 119)
Alguns desatentos projetam a ação dos contos na produção de efeitos somente para as crianças, destacando uma face dedicada ao aspecto lúdico da fantasia. Entretanto, ao observar estas narrativas com maior profundidade, pode-se ampliar as possibilidades para uma ação efetiva em todos os públicos. As crianças têm naturalmente um impulso espontâneo que facilita a recepção das histórias por conta de serem menos moldadas pela sociedade materialista – são elas que conseguem aceitar facilmente o aspecto maravilhoso dos contos. Costa (2006, p. 94) refuta a ideia de que histórias são para crianças apenas:
Há, contudo, uma omissão imperdoável nessa crença de que apenas as crianças gostam e devem ouvir histórias. Os adultos recebem com igual prazer, encantamento e curiosidade as histórias adequadas à sua visão de mundo e à sua experiência de vida. Nesse sentido, contar histórias é também um ato de congraçamento, que irmana o público, conquistado pelo desempenho do contador e pela força do texto escolhido.
Bruno Bettelheim afirma que os contos de fadas ajudam a criança na difícil tarefa de encontrar um sentido à vida, e os adultos também. Para o autor “nada é tão enriquecedor e satisfatório para a criança, como para o adulto, do que o conto de fadas folclórico. […] através deles pode-se aprender mais sobre os problemas interiores dos seres humanos”. (1997, p. 13)
Joseph Campbell (2008) acredita que a mitologia desempenha várias funções, sendo que uma delas é, ao mesmo tempo, psicológica e pedagógica. Para ele, o mito precisa ser o companheiro do ser humano em todas as fases da vida, por exemplo, como instrutor das crianças e como preparador para a morte dos idosos.
Em entrevista ao jornal O Globo, do Rio de Janeiro, Couto enfatiza o valor de ouvir histórias e confirma que estas não são somente para crianças:
Uma certa racionalidade nos fez envergonhar deste apetite, atirando as histórias para o domínio da infantilidade. Essa estigmatização da pequena história está presente também na literatura: veja-se a forma como se secundariza o conto em relação ao romance. O advento e a hegemonia da escrita são também responsáveis por essa marginalização da oralidade. (p. 6)
Não é possível apontar ao certo – a sociedade ou o próprio ser humano – o responsável por esse rompimento que rouba dos adultos esta experiência imaginativa e lúdica. Os adultos são levados a abrir mão dos sonhos, atrelando suas vidas na rudeza da rotina e deixando de viver uma essência que, ainda assim, não os abandona. Tornar-se adulto perece ser o reconhecimento de que algumas coisas são impossíveis. Neste sentido “o conto pode manter viva essa chama de familiaridade com o desconhecido, porque lá as experiências inexplicáveis fazem sentido” (MACHADO, 2004, p. 28).
Referências:
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
CAMPBELL, Joseph. Mito e transformação. São Paulo: Ágora, 2008.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil. São Paulo: Moderna, 2000.
COSTA, Marta Morais da. Mapa do mundo: crônicas de aprendiz. Belo Horizonte: Leitura, 2006.
COUTO, Mia. O Globo, Rio de Janeiro, 30 jun. 2007. Caderno Prosa & Verso.
GRIMM, die Brüder. Kinder – und HausMärchen. Manesse Verlag. Zürich: Conzett & Huber, s/d. 2 vols.
MACHADO, Regina. Acordais – fundamentos teórico-práticos da arte de contar histórias. São Paulo: DCL, 2004.
Rossane Lemos é jornalista, professora universitária e mestranda em literatura*.
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