Cronicamente (In)viável: Ciclos de morte e renascimento. Ou, O mito da fênix

“Na mudança, na metamorfose e no caos, a vida se completa”.

Acredito em ciclos. Que a vida é circular, mas não repete-se igual. A frase em destaque, acima, é de um amigo. Um dia, ele leu um dos meus desabafos sobre o eterno desejo de mudança e comentou com essa frase. Vira e mexe, a gente precisa se reinventar e recomeçar do zero. Não é um processo fácil. Requer, além de desapegar do que já não nos serve, a capacidade de se moldar às novas circunstâncias. Resiliência é só uma palavra da moda, dirão alguns. Mas quem cumpre um destino de fênix conhece seu significado nas entrelinhas.

Recordo de uma frase do romance Os versos satânicos, de Salman Rushdie: “Para renascer, é preciso morrer primeiro”. É dita pelo personagem Gibreel Farishta, um ator famoso que vive uma metamorfose após sobreviver a um desastre aéreo. Quantos de nós não enfrenta suas pequenas mortes cotidianas? E precisam juntar as próprias cinzas, aquecê-la e desse montinho disforme renascer?

A fênix era conhecida como Bennu entre os antigos egípcios

Os ciclos de renascimento e o mito da fênix

O mito da fênix, embora atribuído à cultura greco-romana, surgiu no antigo Egito. Depois, foi adotado pelos gregos e, mais tarde, pelos cristãos. Ana Lucia Santana, mestra em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo (USP), explica em artigo (leia aqui) que entre os egípcios, a fênix estava associada ao culto de Rá, o deus-sol.

Algumas versões do mito dizem que a ave, que vivia séculos, pressentia a chegada da própria morte e construía uma pira funerária onde se auto-incendiava, renascendo das cinzas do antigo ser. Outra versão diz que a fênix se jogava nas chamas do altar de Rá, na cidade egípcia de Iunu, chamada pelos gregos de Heliópolis (Cidade do Sol).

Para os egípcios, a fênix era o símbolo da imortalidade, sendo ainda associada ao nascer e ao pôr do sol. Para os cristãos, na arte sacra, a ave representa a ressurreição de Cristo.

Os russos chamavam a ave mítica de Pássaro de Fogo

A fênix como avatar dos recomeços

Adotei a fênix como avatar pessoal há alguns anos. Justamente quando enfrentei um ciclo de morte e renascimento. Desde então, recorro ao arquétipo como metáfora pessoal, para lidar com as reviravoltas da vida, com as mudanças repentinas, com as alterações que exigem alta capacidade de adaptação.

Em sua versão mítica, e mais uma vez recorro a Ana Lucia, a fênix é considerada ícone de “esperança, persistência e transformação”. É benéfico para o espírito eleger um símbolo de tamanha força para suportar turbulências.

Nas situações complexas da vida, como recuperar-se de uma doença grave, superar a perda de uma pessoa muito querida ou enfrentar uma mudança de carreira na meia-idade, após, por exemplo, um desemprego involuntário, a ideia de que somos capazes de nos reerguer das quedas mais monumentais, realmente me inspira.

Autodescoberta no ritmo de cada um

Processos de autodescoberta também me estimulam. A cada vez que preciso me incendiar na fogueira da fênix, lembro primeiro de queimar todas aquelas coisas desnecessárias que vão se acumulando na alma, para depois abrir espaço para as verdadeiras transformações. E por mais que a literatura de autoajuda esteja recheada de dicas para “sair de zona de conforto” de forma pasteurizada e nem sempre realista, creio na capacidade humana de adaptar-se e de traçar novas rotas a cada golpe do destino ou empecilho no caminho.

Nenhum estudioso do mito da fênix sabe exatamente quanto tempo após virar cinzas, a ave renascia como um bebê “aberto a eterna novidade do mundo”, parafraseando verso famoso de Fernando Pessoa. Acredito que ela reabria os olhos para a vida de forma lenta e gradual, com profundidade e acúmulo da sabedoria de muitas vidas.

Toda mudança, para ter significado real, não pode ocorrer apenas para demonstrar aos outros “o quão bem sucedidos somos”, mas para nos revelar a beleza da nossa jornada em um universo em eterna transformação…

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*Cronicamente (In)viável é uma série de reflexões sobre ser e estar no mundo, inspirada nas minhas vivências e naquilo que observo ao redor. A série tem irmã gêmea, em outro blog, chamada (Im)paciente Crônica. Quem sabe um dia, transformo as duas em livro…

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