Conto: Varrendo a vida

As janelas permaneciam sempre fechadas. A porta só abria quando Alice precisava sair para resolver as demandas da vida. O silêncio naquela residência causava um certo desconforto entre os vizinhos. Nada se via, nada se ouvia. Se alguma coisa acontecesse a Alice ali dentro, ninguém notaria.

Exceto à noite, quando a mulher de meia idade e expressão cansada abandonava o isolamento para realizar a única atividade que a permitia ter um mínimo de convívio social naquele ambiente: varrer a rua. Era uma tarefa diária, executada de forma primorosa e pontualmente à meia-noite.

Abria as portas vermelhas, empunhava a vassoura e encetava o processo de pôr fim aos resíduos abandonados na calçada. Não se ouvia uma palavra sequer, apenas o esfregar ligeiro da piaçava no chão. Poeira alguma conseguia resistir à sua insistência, que se assemelhava a uma compulsão pela limpeza. Seus critérios, ninguém compreendia. Uns dias, a tarefa não durava mais que poucos minutos. Em outros, eram horas consecutivas, madrugada adentro.

Alguns vizinhos julgavam-na louca. Alice tampouco passava imune pelas crianças, que soltavam piadinhas nas poucas oportunidades em que se mostrava durante o dia. Houve uma série de especulações por meses, desde que Alice se mudara para a nova vizinhança. Nunca houve respostas, e o assunto fora discretamente encerrado nas rodas de bate-papo. O assunto, sim, mas não Alice, que, ignorando comentários e indagações, mantinha-se firme na árdua missão de tentar varrer para longe as lembranças de seu passado.

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