Wilson Simonal – Só ele mesmo sabe o duro que deu…

Divulgação
Simonal foi um artista único que acabou sendo arrancado de si mesmo e largado à própria sorte

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

*Texto da jornalista Giovanna Castro

Estou atrasada quase dois anos, é certo, mas o comentário que se segue ainda vale muito em tempos nossos de superficialidade. Não pude ir ver quando passou nos cinemas, mas finalmente consegui assistir na televisão o documentário “Simonal – Ninguém sabe o duro que dei”, filme do Casseta Cláudio Manoel, co-dirigido por Micael Langer e Calvito Leal, lançado em 2009. Eu sempre tive curiosidade por essa figura da MPB, de quem tinha forte na memória, infelizmente, apenas as músicas “Meu limão, meu limoeiro” e “Sá Marina”.

Em casa, muito embora meu pai e minha mãe sempre tenham ouvido muita música – ele com LPs e, mais recentemente, CDs – e ela, no dial do rádio mesmo – não me lembro de ter ouvido Simonal na infância ou adolescência. Meu pai não tinha disco de Wilson Simonal, confirmei depois, mas minha mãe disse que o acompanhava pela TV e por revistas. “Ele era muito charmoso”, ela fez questão de ressaltar. E era mesmo, pude atestar nas cenas antigas do documentário. Um sedutor nato.

Me interesso muito por documentários. Por histórias de vida de pessoas que, de uma forma ou de outra, fizeram a diferença em algum momento da vida para pouca gente no seu entorno, ou para multidões, como foi o caso de Simonal, pioneiro na função de animador de auditório, por assim dizer. Isto porque, antes dele, segundo conta Miele, outra figura lendária da história da MPB, artistas se apresentavam em pequenos espaços. Simonal regia multidões em ginásios lotados. Ele brincava com a plateia e as dividia em partes que cantavam pedaços e tons diferentes de cada canção, fazendo um animado côro. Impressionante!

Lembro que, durante as entrevistas de divulgação do filme, me chamou muito a atenção o fato de a carreira de Simonal tem caído num terrível declínio em decorrência de sua suposta colaboração com o governo militar, naquele tempo, em seus anos mais duros e cruéis. Simonal teria sidou um X-9 do governo militar e teria delatado artistas da MPB, naquela época sombria em que ser delatado poderia significar literalmente uma sentença de morte. Claudio Manoel, um dos diretores, disse que, no filme, preferiu apenas registrar os comentários das pessoas sem fazer nenhum juízo de valor, e ele consegue o seu intento.

Toda a polêmica teria começado depois que Simonal descobriu que o seu então contador teria surrupiado dinheiro seu. Segundo se comentou, ele teria mandado uns fortões darem uma coça no contador, homens que seriam ligados ao temido DOPs, Departamento de Ordem Política e Social, responsável por controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime. Não fica claro no documentário se houve realmente a tal coça, principalmente dada pelos durões do DOPs, mas fato é que depois disso, Simonal ficou marcado como aliado dos militares.

A partir daí, foi ladeira abaixo. Especialmente depois que o jornal O Pasquim começou a publicar charges em que atribuía a Simonal a pecha de dedo-duro. Foi quando o showman que arrebatou multidões começou a receber sua “overdose de ostracismo”, como descreve a viúva do artista. Segundo ela, ainda no leito de morte, Simonal tinha esperança de ter sua imagem desvinculada da delação que jamais foi comprovada.

Ele mesmo correu atrás e conseguiu um documento do governo federal que atestava que ele nunca havia sido colaborador da ditadura. Me senti constrangida de ver aquele homem de tamanho talento, que anos atrás conseguira hipnotizar plateias com seu carisma, olhos brilhantes e sorriso arrebatador, sentado num sofá de programa de televisão tentando limpar a própria imagem já completamente consumida pelos radicalismos políticos da época que coincidiu com o auge da carreira.

Simonal foi vítima do acirramento de posições, conforme o próprio cartunista Jaguar, uma das figuras proeminentes de O Pasquim, tentou explicar. Entendo o ponto de vista dele, que aparentemente não hesitou, na época, em vincular nos seus desenhos o nome de Simonal à figura do dedo-duro. Ele fala que a conjuntura política levava a essa polarização e O Pasquim estava do lado contrário à ditadura, daí ter assumido uma furiosa posição contra o cantor. No entanto, sob toda esta capa política que é parte da história do Brasil, na minha opinião, como também é sugerido no documentário, está a sombra do racismo.

Como era possível um homem negro, de origem humilde, ex-militar, fascinar tanta gente, envolver a todos com seu carisma e conseguir do público amor, paixão e devoção, gratuitamente, sem pressões ou imposição de medo e ameaças? E mais do que isso, ganhar muito dinheiro mesmo. Naquele tempo até se disse que Simonal estaria alinhado com a cartilha do governo de tentar distrair o povo do que acontecia nos porões do regime. Creio que foi uma infeliz coincidência.

Na época, ninguém buscou verificar a verdadeira história e nenhum artista se levantou, ao que tudo indica, em defesa de Simonal. Não houve sequer quem se apresentasse como tendo sido delatado ou dedurado pelo cantor. Foi mais fácil deixar as coisas como estavam… Fato é que a sombra resultou na dilaceração do artista, morto há quase 11 anos.

Um homem que, amargurado pelos acontecimentos e pela impotência em reverter a situação, entregou-se à bebida como se com litros de álcool pudesse afogar a vergonha, a injustiça e a incompreensão por ter sido arrancado de si mesmo, do talento em seu estado mais puro, poesia etérea que sucumbiu à força bruta da inveja, do ressentimento, do pré-julgamento e do pré-conceito.

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