Cronicamente (In)viável: Parem ‘1984’ que eu quero descer…

‘1984’ já foi levado ao cinema duas vezes, por Michael Anderson, em 1956, e por Michael Radford, em 1984. A imagem é da versão dos anos 1980 e mostra o ator John Hurt, que vive Winston, o protagonista da história

O mundo respira ares de Idade Média e o obscurantismo domina o que antes era busca por conhecimento. No Brasil, nas universidades federais, bolsas de pesquisa são cortadas porque a prioridade do atual governo não é a educação, o avanço da ciência ou o estímulo ao pensamento crítico e criativo que fazem as sociedades evoluírem. Cortes na educação infantil tiram, literalmente, a merenda da boca de estudantes pobres. Crianças que, muitas vezes, tinham a refeição da escola como a única do dia. As ciências humanas são execradas, como se a matemática, a física e a química não tivessem também suas origens na capacidade humana de questionar, investigar e experimentar.

Nesse mundo medieval do século XXI, livros didáticos devem ser reescritos porque a história é a mãe da memória e a memória é o impulso que nos torna humanos, críticos, questionadores e capazes de fazer escolhas sensatas. Então, para nos apagar enquanto indivíduos e assim minar as somas que fortalecem as comunidades e suas justas lutas por reconhecimento e respeito, é preciso agir como o ‘Ministério da Verdade’ criado por George Orwell no livro ‘1984’, e distorcer os fatos, fazer a mentira mais deslavada e sem lógica vestir o manto da verdade, que nua, busca abrigo na voz dos poucos humanos de bom senso que ainda restam.

Esse povo que atualmente nos governa detesta o conhecimento, acha inteligência algum tipo de doença e intelectuais seres altamente perigosos e ofensivos. Tanto que preferem dar ouvidos a criaturas perversas que usam o dom da palavra para alienar e não para educar. Gente que prefere jogar as discussões mais sérias no ringue rasteiro dos xingamentos gratuitos, criando polêmicas esdrúxulas que só afundam o país numa lama podre. E há quem aplauda esse circo e coloque caminhões de lenha nessa fogueira.

Gente mesquinha, preconceituosa e tacanha que dissemina na internet boatos infundados sobre vacinas, ressuscita equívocos há muito esclarecidos sobre o formato do planeta e sobre a evolução das espécies, desmerecendo milênios de estudos, pesquisas, observações e esforço intelectual. Porque tudo o que a humanidade é, deve aos indivíduos que, geração após geração, não aceitaram apenas o que seus olhos mostravam e foram em busca de entender as origens e os porquês da vida.

Essas criaturas abissais dessa idade das trevas em que, infelizmente, fomos jogados pelo desvario e os preconceitos de milhões de brasileiros que transformaram seus títulos de eleitor em pistolas calibre .44, servem de ‘gurus’ do apocalipse, perdidos em delírios, seitas e visões do inferno alimentadas por uma pudicícia forjada em desejos recalcados e muita hipocrisia. São seres malignos, que sofrem de deformidades da alma que mil encarnações ainda são poucas para reabilitar.

Nesse mundo de 2019 que parece saído de uma ficção científica distópica, teorias da conspiração substituem o que antes era fato histórico ou constatação científica. Pais e mães desinformados por grupos mal-intencionados de Whatsapp, incapazes de refletir e enxergar para além de suas bolhas, arriscam as vidas de suas crianças e epidemias antes praticamente extintas, renascem com o poder de mutação de vírus cada vez mais letais. Enquanto isso, médicos sanitaristas, cientistas e pesquisadores têm seus alertas desacreditados por correntes de grupos que reúnem desesperados e também os perversos que só querem criar o caos e assistir a miséria se espalhando.

Com os humanos regredindo na mesma proporção em que consomem as últimas reservas do planeta, a religião, nas suas formas mais preconceituosas, ditam muito ódio ao invés de pregar o amor, o respeito e a tolerância que, em tese, deveriam inspirar quem tanto apregoa estar imbuído de fé. Em nome de Deus não só se mata, como também e, principalmente, se aliena os indivíduos.

Por que 1984?

O livro de George Orwell é de 1949. O escritor criou uma fábula ambientada no distante futuro de 1984 (em comparação a 1949), quando os seres humanos viveriam em uma ditadura global, comandada pelo Grande Irmão (Big Brother), sem liberdades individuais ou direitos civis. O livro começa com o mundo dividido unicamente em três super países que se agruparam após uma guerra catastrófica. Esses super países ora brigam entre si, ora se aliam na proporção de dois contra um, ora se fundem como um único império. A inspiração de Orwell é o contexto da Europa após a II Guerra Mundial. Antes do conflito, porém, a Europa foi varrida por uma onda de ultranacionalismo, conservadorismo e autoritarismo. Nos últimos anos, a onda nazi-fascista vem se erguendo de novo e não só no ‘Velho Mundo’.

>>Leia resenha comparativa entre 1984 e Admirável Mundo Novo

Tenho me sentido dentro das páginas de ‘1984’ cada vez que abro o noticiário do dia e não paro de comparar a história do livro com a realidade atual do Brasil e do mundo. Às vezes, as semelhanças são tantas que até assustam.

No Ministério da Verdade, funcionários treinados para obedecer sem questionar são encarregados de reescrever a história do mundo de acordo com as conveniências de quem exerce o poder no momento ou de acordo com os jogos de guerra dos três super países da história. Se a gente pensa nas redes sociais de agora e no compartilhamento de notícias falsas, ou seja, de mentiras vestidas de notícia, e na forma ignorante como as pessoas afirmam essas mentiras como se elas fossem a mais cristalina verdade, a sensação é de que o planeta virou uma das seções do ministério de Orwell.

Em ‘1984’ também somos apresentados ao Ministério do Amor, que existe para torturar física e psicologicamente os indivíduos que não se ajustam ao comando do Grande Irmão. O Ministério do Amor usa a força bruta, quebra o corpo para quebrar o espírito, tal qual a polícia ou as milícias de agora. Cada vez que vejo comentários nas redes sociais de gente pedindo pena de morte ou desejando ter porte de arma, também sinto como se os torturadores desse ministério tivessem escapado das páginas do livro.

Para exercer o controle social dos cidadãos em ‘1984’ há a vigilância das teletelas, aparelhos instalados nas casas que se assemelham a uma televisão e que, além de só passar a programação permitida pelo Grande Irmão, também filma o dia a dia das pessoas e envia os dados para o alto comando. Não existe privacidade no mundo futurista imaginado por George Orwell. Também não existe mais privacidade com a inteligência artificial em smartphones e eletrodomésticos. E a tendência é piorar, até porque, toda uma geração nasceu com as redes sociais borrando as fronteiras entre vida pública e privada.

Mas, o que mais aproxima ‘1984’ do contexto político e social do Brasil e do mundo atual, para mim, é o ‘Dia do Ódio’, um evento que o Grande Irmão promove para que os cidadãos subjugados, humilhados, frustrados e vigiados possam exercitar a violência em sua forma mais primária e brutal. Nesse dia, as pessoas são estimuladas a gritar e dizer ofensas impublicáveis e a machucar umas às outras sem culpa. Mas, obviamente, elas não se voltam contra o Grande Irmão, mas contra vizinhos e contra, claro, o inimigo oculto, o outro, o estrangeiro representado no livro pelos moradores dos outros dois super países.

A crise migratória global e toda a raiva e xenofobia que levam, por exemplo, a atentados como os ocorridos este ano na Nova Zelândia ou no Sri Lanka dão uma ideia do que seria ‘O Dia do Ódio’ da vida real. Os xingamentos e o desprezo, que muitas vezes culmina também em agressão física, de moradores do sul e do sudeste do Brasil contra nortistas e nordestinos também ilustra bem o quanto um governo que legitima o preconceito se assemelha com o Grande Irmão do livro.

E o que fazer para sair desse looping?

O final de ‘1984’ é trágico e pessimista como reza a cartilha das distopias que George Orwell e outros autores anteriores, contemporâneos e que vieram depois dele ajudaram a consolidar e que Black Mirror apresentou à geração Z. Mas, em 2019, resistir é o único recurso para sobreviver à onda de obscurantismo e conservadorismo que ameaça afogar o mundo. E resistir significa muitas coisas, desde ir para a rua protestar até ler e analisar criticamente as informações que chegam. Mesmo com os seres abissais que por agora governam o Brasil querendo nos tirar o direito à educação, é preciso apostar no conhecimento como a única arma que realmente pode nos salvar das trevas.

*Publicado originalmente em mardehistorias.wordpress.com

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Sobre viver confortável na própria pele

Todas as belezas, de todas as cores e tamanhos, merecem o mesmo respeito

Sentir-se confortável com o próprio corpo ainda é um desafio para as mulheres. Com tantos apelos na mídia, tantas receitas ‘milagrosas’, e os padrões que começam a ser construídos desde a infância; para algumas, olhar-se no espelho e gostar do que estão vendo é um exercício constante de construção e manutenção da autoestima. Falo das mulheres porque é sobre elas que ainda pesa a exigência por uma imagem impecável. É delas que ainda se exige que “existam para enfeitar o mundo”. É sobre o corpo feminino que existe toda uma pressão e controle. O que não significa que homens, ou qualquer outra pessoa dos gêneros para além do binarismo homem x mulher, também não sofram com padrões de beleza às vezes impossíveis de alcançar e insensatos.

O esforço diário para a construção e manutenção da autoestima é mais que necessário. E estar confortável na própria pele não significa acomodar-se aos ‘defeitos’. Até porque, onde está o manual que diz que tal característica é de fato um defeito? Pessoas não nascem com manuais e qualquer tentativa de enquadrá-las só serve para disseminar preconceitos e causar angústia. A beleza é uma construção social que se encaixa na cultura de cada época. Isso significa que ela é relativa e que algo considerado muito bonito hoje, pode não ter sido valorizado há vinte ou trinta anos. E vive-versa. E se os padrões de beleza mudam constantemente, porque não podemos fazer um exercício de aceitar todos os padrões? O que significa, de fato, que o bacana é não ter padrão.

Vale tudo sim!
“Será que vão gostar do meu cabelo pink?” “O que importa é que você gosta!”

Foi-se o tempo em que ser ‘diferente’ era algo negativo. Cada vez mais, o mundo – apesar das resistências acirradas de alguns – abre-se para a diversidade. E que coisa maravilhosa é essa tal de diversidade! Que libertador é olhar-se com amor e respeito pela história escrita nas rugas, nos fios brancos, nos quilos a mais ou em um nariz mais largo.

Vale cabelo liso? Vale. Cacheado? Vale. Crespo, volumoso, colorido, descolorido? Sim! Ser careca? Lógico! Ir ao salão toda semana? Se é possível pagar por isso, por que não? Não gostar de fazer as unhas, maquiar-se? O que tem de errado em não fazer as unhas ou pintar o rosto? Ser assíduo na academia e manter uma rotina de alimentação controlada? Se te faz bem, se é por você mesma que está fazendo o esforço de abrir mão do brigadeiro e não porque impuseram regras sobre o seu corpo e o seu existir, então faça seus exercícios e sua dieta e, principalmente seja feliz!

Saudável vestindo XL
“Amiga, tá me achando bochechuda na foto?”  “Que nada, você está linda!”

Vestir GG, XL ou qualquer outro manequim grande e ainda assim ser saudável? A ciência e a medicina estão revisando vários estudos e derrubando mitos sobre a relação peso e saúde. Já caiu por terra, por exemplo, a ideia de que o Índice de Massa Corporal (IMC) é o indicador supremo de que tudo vai bem no organismo. Na verdade, o IMC é só um dos muitos índices que precisam ser checados antes de apontar se uma pessoa considerada gorda é de fato doente. Ou se uma pessoa considerada magra é de fato saudável.

Junto com o IMC, exames precisam comprovar o estado do organismo do indivíduo. Há gordos com taxas de triglicérides, colesterol e glicemia normais e há magros com índices estratosféricos. Nem sempre, um corpo volumoso significa sedentarismo ou um corpo magro significa vida ativa. Nem sempre, um corpo maior é sinal de desleixo ou de voracidade à mesa. Estresse, descompassos hormonais, predisposição genética e uma infinidade de outros fatores podem levar alguém a engordar ou a emagrecer.

Além disso, nunca é demais lembrar que quem faz dieta e pega firme nos halteres de forma consciente e responsável, faz acompanhamento médico e nutricional, se submete a exames de rotina de acordo com as orientações desses profissionais e utiliza os serviços de preparadores físicos, fisioterapeutas, personal trainers, instrutores etc., para evitar lesões musculares e complicações às vezes difíceis de tratar.

E vale ainda lembrar que muitos gordos se exercitam sim, porque fazer exercícios não está diretamente relacionado a emagrecimento, mas a manter o corpo ativo, os músculos e articulações saudáveis para as atividades cotidianas.

Xô, gordofobia!

Saúde nem sempre é sinônimo de um corpo enxuto. A questão é sentir-se bem. E se você está bem internamente e se seu corpo está saudável vestindo 38/40, ótimo! Mas se está saudável e você se sente bem também vestindo 50/52/54…, não deixe ninguém dizer ou te fazer pensar o contrário. Empodere-se!

E aqui, ressalto, não estamos falando de extremos. Ninguém está fazendo apologia a anorexia ou a obesidade extrema. Não é bacana ser internada com desnutrição severa por privar o organismo de nutrientes essenciais à sobrevivência; ou pesando 300 quilos por algum piripaque severo no sistema endócrino. Mas também não é bacana julgar anoréxicos e obesos extremos como se fossem sub-pessoas. Antes de atirar pedras, faça um exercício de empatia e entenda que nesses casos é necessário ajudar porque a vida de alguém pode estar em risco. Mas essa ajuda precisa ser especializada, com tratamento médico e psicológico. E o apoio de quem não é especialista tem de ser oferecer compreensão e suporte emocional. Julgar, reclamar ou fazer pressão psicológica só agrava o problema.

Enfatizo que anorexia nervosa, bulimia, obesidade extrema ou qualquer outro transtorno alimentar requerem intervenções totalmente diferentes de simplesmente achar que toda pessoa que veste tamanhos extras-largos é uma ‘gorda sem força de vontade’ que tem de ser conscientizada porque está ou vai ficar doente se não emagrecer. Muitas vezes, o nosso comentário “bem intencionado” esconde preconceitos, camufla uma horrorosa gordofobia.

Beleza é um estado de espírito
“Acho que vou assumir os meus fios grisalhos” “E eu vou jogar umas mechas azuis no platinado” “Vou de vermelhão, que hoje eu quero causar!”

Gostar de se cuidar, seja da forma física ou da pele, dos cabelos, unhas, etc., é algo muito particular. Algumas pessoas são mais ligadas nessas rotinas de beleza, outras menos. A questão é ter em mente que a beleza precisa vir de dentro para fora e que padrões só servem para criar categorizações excludentes, que isolam e deprimem. Além disso, de nada adiantará ter um ‘corpo do verão’ e um ‘espírito de porco’.

Felizmente, vemos cada vez mais pessoas de todas as cores, todos os tamanhos, todas as idades, gêneros e orientações sexuais estampando capas de revistas, posando para ensaios, escrevendo blogs, postando vídeos cheios de autocuidado, autoestima e boas vibrações no Youtube. Essas iniciativas ainda são gotas no oceano de padronizações que muitas publicações, sites, redes sociais ou  programas de tv vendem como sendo ‘o modelo ideal’. Mas é um avanço e de avanço em avanço, construiremos um mundo decente. Fico feliz em ver que no mosaico das gentes maravilhosas que povoam esse nosso planeta, haverá cada vez mais espaço para as muitas belezas que existem e que ainda vão surgir!

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Desabafo: Sim, uma vítima do preconceito

PreconceitoMinha pele é clara, meu cabelo tem poucos cachos, meus olhos são castanhos escuros, mas eu sou negra. O tempo me fez perceber que raça não tem relação com cor de pele, mas com postura, com cultura, com ideologia. Meu sonho de menina era ter uma cor escura na pele. Minha mãe é negra, minhas melhores amigas são negras. E eu, droga, eu era amarelada, encardida. Ouvi de alguém recentemente que pessoas da minha cor não sabem o que é o preconceito. As lágrimas molharam meu rosto depois que saí dali, porque eu já senti na pele o preconceito.

Senti na pele o preconceito quando manifestei minha vontade de torrar no sol para ver a pele escurecer e fui advertida sobre os problemas que teria se minha cor fosse preta. Mas eu era negra e ninguém conseguia entender. E eu não conseguia entender por que as pessoas não me entendiam. Mas ali foi apenas o início da dor. Eu não sabia, mas ela haveria de piorar bastante. E piorou, quando eu comecei a namorar com um homem lindo, apaixonante, que amei verdadeiramente, e que era negro. Tive de suportar cada olhar, que metralhava as nossas mãos dadas, as nossas manifestações públicas de carinho.

Demorei a entender que as pessoas fitavam a diferença da nossa cor. Cheguei a achar, ingênua, que era admiração pelo amor entre nós. Mas não era. Eram olhares de quem não entendia, de quem não aceitava aquele casal de cores tão opostas. Cada olhar de incompreensão me fuzilava. Uma vez, caminhando pela orla da praia, não resisti e disparei um: “está olhando o quê??”. Percebi o constrangimento da pessoa. E entendi que não era coisa da minha cabeça. Para mim, o conceito de raça não cabe numa aquarela, não cabe numa tela de photoshop. Pra mim, as discussões de raça hoje perpassam essa miudeza.

E, por favor, não me venham dizer que nunca senti na pele o que é o preconceito.

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