Uma estudante de jornalismo decidiu alugar um barraco na favela do Piolho, em São Paulo, a fim de reunir material sobre a vida no local para o seu trabalho de conclusão de curso. O resultado foi uma matéria que até rendeu publicação na Revista Rolling Stone de janeiro. A atitude da menina me fez refletir, e queria muito dividir isso com vocês.
Sou jornalista formada, estudei quatro anos a profissão que exerço atualmente. E algumas coisas sempre me incomodaram. Dentre elas, até que ponto estamos diante de uma apuração jornalística e qual o real significado da expressão “função social”, tão atrelada à atividade jornalística.
Na matéria publicada na revista, a menina conta os riscos por que passou, afirma ter visto a morte de perto, e foi até convidada para presenciar uma cobrança de dívida: ela assistiu ao pagamento com a própria vida do devedor. Confesso que me preocupa um pouco este tipo de atitude.
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>> Leia parte da reportagem publicada na revista
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Não quero desmerecer a atitude da estudante, de forma alguma. Foi corajosa a menina, que passou um mês em um barraco alugado. Mas me pergunto até que ponto isso é jornalismo. Tenho pensado muito ultimamente sobre o assunto. Ainda não cheguei a conclusão alguma. Por isso, estou abrindo as portas para o debate.
Como vocês enxergam tal atitude? É assim que se faz jornalismo? Quando falamos em função social é sobre isso que estamos tratando? Será que não estamos confundindo as coisas? Vivemos um momento crítico, em que a exigência do diploma para o exercício da profissão tem sido motivo de discussão. É o momento de debater o assunto.
Penso que retratar essa realidade é válida (para quem ainda não leu, recomendo o livro Abusado, de Caco Barcellos). Mas me pergunto até que ponto isso é jornalismo. Questiono-me como um projeto desses passou pelo aval da coordenação do curso de jornalismo. Ainda estou amadurecendo as ideias, construindo minhas teorias… Quero muito ouvir a opinião de vocês.
Alane, estudante de jornalismo ou não, a garota foi muito corajosa. Isso não significa que esse trabalho seja o retrato do que acontece de fato nos morros desse país, muito menos que ela tenha tido interesse em mostrar essa realidade. Afinal, presenciar uma cobrança de dívida de forma tão brutal, apesar de parecer uma situação completamente desconhecida para muitos de nós, em uma escala de periculosidade, esse é apenas mais um ato de violência, e que acontece todos os dias. Mesmo assim, esse trabalho continua sendo uma apuração jornalística.
Não acho que o tom apelativo que você deu ao seu texto seja necessário.
Essa é a realidade do nosso país, e uma pequena garota, em seu tão pequeno Trabalho de Conclusão de Curso, conheceu uma pequena parte da realidade de algumas “donas” e “seus”, mas que é vivida pela maioria espalhada por esse Brasil, e conseguiu mostrar aos leitores da revista Rolling Stone, que não são TODOS. Percebe como essa atitude é pequena?
Me desculpe a ênfase, mas realmente, não só como ela, muitos outros jornalistas apuram fatos semelhantes. É possível assistir essa cena às 18h30 todos os dias na sua TV, sem precisar ter uma antena paga, e assim com os leitores da revista, que não são TODOS, nem TODOS assistem TV nesse horário, mas os que assistem fazem APENAS isso. Compreende?
Falar nesses “muitos”, me faz pensar como mesmo vendo ou não tudo isso, os fatos não se tornam outra coisas além de fatos, e nada muda.
Virão Patrícias, Alanes, ou Anas. Como veio Tim, e como já se foi. E aí?
VAI MUDAR?
É apuração jornalística. Resta saber quantos de nós, com o nosso espírito desbravador e justiceiro, morrerão esquartejados e queimados em pneus, e serão jogados em grutas nos moros do Macaco ou do Piolho. E quantos “Seus João” e “Donas Maria” terão que assistir esse filme pela brecha de seus barracos. E até quantas Yaras ganharão dinheiro para dormir em barracos e no outro dia assistir ao jornal na cadeira do salão de beleza (não que seja errado desfrutar do que se merece) mas o que se merece?
E se todos nós fossemos morar nos morros, ou se cada um de nós tivesse a oportunidade de presenciar um assassinato. Será que a revolta tocaria o nosso coração, ou melhor, será que isso nos levaria a LUTAR por uma realidade diferente?
Eu, você, e você que leu estamos errados!
Fato é Jardim Romano alagado, fato é que já é fevereiro, fato é que nessa semana um senhor morreu afogado ao CAIR DA CAMA.
VOCÊ QUE É JORNALISTA LEVANTE DAÍ. JÁ ESTOU REVOLTADA COM ESSA REALIDADE!
Convido vocês para uma reflexão sobre tudo isso. Quem sabe até uma manifestação de todos esses pensamentos em forma de uma atitude digna de seres humanos com o mínimo de compaixão. Pensem nisso.
Andreia respondeu com muita propriedade os questionamentos que tenho feito ultimamente. E, Ana, se você voltar a ler o texto vai perceber que a intenção é promover o debate. E debater significa justamente abrir o leque das ideias que temos. É o que você fez, opinou.
Abraços,
Alane.
Acredito Ana, que o texto de Alane não demonstra falta de compaixão. Antes, espelha uma dúvida que acomete muitas das pessoas que preferem trocar de canal ao ver cenas sensacionalistas que bebem na fonte da violência para aumentar os números da audiência. Você acredita mesmo que os programas que mostram tiroteios, esfaqueados, agressões, humilhações, contribuem para mudar a realidade ou apenas exploram o grotesco e o cruel para saciar a curiosidade mórbida de uma parcela da audiência? É mesmo preciso? É essa a pergunta que a colega faz. Para mim, não é e nem nunca foi levantar bandeira social, exibir a miséria alheia em horário nobre. Falar da violência sim, exigir das autoridades que cumpram seu papel sim, denunciar a opressão onde quer que ela esteja sim, tudo isso, com certeza contribui para ao menos levar as pessoas à reflexão. Mas expor a violência e seus requintes de crueldade, antes ajuda a entorpecer, pois é tanto terror estampado nas páginas principais e nos programas da tv, que a realidade, para muitas pessoas, já nem choca, infelizmente. Porque quando não nos chocamos, deixamos de ser humanos e não sendo humanos, aí sim, esquecemos o que quer dizer compaixão ou mais, solidariedade, que é uma palavra bem mais bonita e necessária. Solidariedade não é dar esmola e sim, oportunidade.
Não creio que tenha sido esse o mote da reportagem da jovem graduanda que foi “morar” um tempo na favela, creio que ela não tinha intenção de ser sensacionalista no seu trabalho. Acredito, embora eu não a conheça, que ela acreditou que expondo-se ao risco dos “seus joão” e “donas maria” da vida, seria como eles e sendo como eles, poderia contar sua realidade. Talvez tenha sido ingênua, em acreditar que morar na favela por alguns meses lhe daria a vivência para retratar a violência nua e crua. Ela se expôs e tentou praticar um jornalismo literário que na minha opinião é apenas pseudo-realista. Porque a realidade de seu joão e dona maria vem da exclusão social que gera violência, vem da falta de oportunidades, vem de um embrutecimento desde a infância, patrocinado por sucessissos governos que distribuem bolsa isso e bolsa aquilo (os projetos assistencialistas só mudam de nome e partido), mas não garante educação e saúde de qualidade. Não garante condições de disputa iguais no mercado, em uma sociedade tão desigual. Uma estudante universitária, a menos que ela tenha nascido na favela e crescido em meio a privação e a superação diária (como existem centenas neste país), jamais vai saber exatamente o que é ser dona maria ou ser seu joão. Ainda assim, ela poderia fazer uma bela reportagem sobre eles, sem precisar fingir ser um deles por um tempo.
A partir do momento que o traficante convida o jornalista para assistir uma execução de dívida, esse jornalista não está explorando um fato cruel, que é caso de polícia, em benefício da sua narrativa? E não me diga que isso é uma denúnca e nem jornalismo investigativo, porque Tim Lopes, que você cita, e Caco Barcellos e outros brilhantes jornalistas investigativos mundo afora, não agem dessa forma. O livro que alane cita, mostra sim um lado humanizado de Caco Barcellos e o tempo que ele passou cobrindo fatos dificeis, mas ele não precisou vestir a pele de alguém, ele continuou sendo o jornalista comprometido com a noticia, sem virar noticia. É possível até narrar em primeira pessoa, mas sem apelar para uma situação forçada como viver numa favela ou viver numa mina de urânio pra mostrar a vida miserável dos mineiros. Você acredita que para mostrar a dura vida de uma prostituta, é preciso se prostituir? Que para mostrar a barbárie da violência doméstica ou do estupro, é preciso apanhar ou ser estuprado? Isso não torna ninguém bom jornalista, apenas contribui para narrativas fake e para a sociedade do espetáculo, a mis-en-cene midiatica que garante audiência e patrocinador. Detesto jornalismo de gabinete, pra mim, lugar de repórter é na rua, mas também desconfio dos jornalistas que aparecem tanto quanto o fato que querem retratar. Para denúnciar esse crime (a lei do silêncio ou a lei do paga ou morre) que impera nas periferias do país, não é preciso presenciar a barbárie na condição de uma testemunha ocular da história levada ao local do crime pelo próprio agressor. É um aspecto para se pensar no trabalho da graduanda. Existe um fator aí que fere a ética do jornalismo. Essa moça testemunhou um crime a convite do criminoso. Ela fala das crianças na favela como as que têm infância de verdade, que visão de poliana ana, convenhamos, infância de verdade tornando-se avião de traficante? infância de verdade passando necessidade? sem frequentar a escola? Essa forma de apuração foi o caminho que ela escolheu, mas cabe questionamento, com respeito, claro. Penso numa cena de Assassinos por Natureza, de Oliver Stone, em que um repórter pega uma câmera, filma uma rebelião no presídio e depois de um tempo, começa também a dar tiros nas pessoas. Não é esse o caso da moça, claro, não me interprete mal, estou apenas tentanto contribuir para o debate e a reflexão levantada pela colega.
E é por acreditar que o questionamento foi feito com respeito, que não creio que o post seja sensacionalista. Ele manifesta uma inquietação, tem um tom critico porque é o pensamento crítico que nos faz reavaliar a nossa sociedade. Pode até ser que, da geração da autora do post para a geração da jovem autora do TCC, muita coisa tenha mudado no jornalismo e este é o momento de rediscutir a profissão. Nem toda mudança é positiva, assim como nem toda mudança é negativa, mas elas precisam ser analisadas, é preciso haver reflexão e para isso, é preciso que alguém questione.
Não existe crítica contra a estudante em si, que acredito que alane não conhece pessoalmente, mas existe uma crítica ao método que ela utilizou para fazer seu trabalho de conclusão de curso, o método de reportagem escolhido, e uma critica ao papel da universidade onde ela estuda. Como uma universidade aceita um trabalho de uma jovem que, por sua vez, aceitou o convite de um assassino para assistir uma execução? Que tipo de valores éticos uma instituição assim defende? Outro questionamento para refletirmos. A pergunta é: este método de apuração é jornalistico? E se for jornalistico, o que ganha a sociedade com a exposição dos dias em que uma jovem se colocou voluntariamente a mercê da violência no morro?
Pessoalmente, espero que o trabalho da garota contribua para bem mais do que ser noticiado por uma semana em todas as emissoras de tv, ganhar alguns prêmios (que para a carreira dela serão importantíssimos) e depois ser engavetado, até que outra narrativa mais violenta ocupe as manchetes. Espero que com os riscos que ela correu, com o trauma de ver uma pessoa ser morta na sua frente, sendo que não é uma encenação ou a sequencia de um filme de Tarantino, é a morte de um ser humano, ela realmente consiga mudar alguma coisa na postura da sociedade diante da violência e da opressão que as camadas mais pobres vivem. Particularmente, não creio que o caminho da mudança, do “levantar da cadeira” como você tão apaixonadamente coloca, seja este.
E espero principalmente Ana, que você consiga compreender que questionar é inerente à natureza humana e que todo debate é bem-vindo, desde que haja respeito e uma tentativa de compreender o ponto de vista do outro, mesmo que você necessariamente não precisa concordar com o outro.
um abraço e obrigada por contribuir para o singelo debate proposto no post.
Bem, eu já tinha esse blog como um dos favoritos aqui no meu pc, mas ese assunto me chamou a atenção.
Primeiro porque mexe com ética, depois com papéis sociais, principalmente dos universitários.
Fala-se muito da pesquisa e extensão, porém há procedimetos para que se construa a sua tese em bases sólidas e não em impressões emocionais.
Não estou falando em cientificidade pura, mas sim numa idéia com o mínimo de especulação e impressionismo.
Ela teve muita, mas muita sorte de não a terem sequestrado ou matado ela logo ali no bar, quando ela disse quem era e o que estava fazendo, se muita gente morre por muito menos.
Talvez se integrássemos a “periferia” até nós, se déssemos condições, voz e espaço, a estudante não precisaria fazer um tcc sobre a “periosfera” se arriscando num ramo selvagem darwiniano na procura da “verdade-verdadeira”, que aliás já se procria nas zonas mais abastadas.
Uma pesquisa de campo é uma justificativa no mínimo sem noção, já que até a polícia, muitas vezes, não consegue entrar no morro. Todos já sebem qual é a polítca das favelas; a preocupação do garoto em levá-la para assistir a um assasinato só tem o propósito de gerar terror
e transmitir uma mensagem de poder.
Embora não seja meu costume ler a Rolling Stone, fico feliz que ela tenha abordado o tema, apesar de achar que a abordagem foi sensacionalista, espero que o editor bote a mão na consciência e procure reportagens melhores.
Nos tempos de hoje uma universidade sem função social é impensável, mas tabém é preciso que se veja quais os limites que se devem ter para que não cause mais uma imagem deturpada e mais tragédias
Muito bacana o seu comentário, Eva. Obrigada pela contribuição ao debate. É este tipo de discussão que precisamos colocar em pauta. Beijão e volte sempre!