Era pra ser só uma consulta com o otorrino

11Sim, era pra ser só uma consulta com o otorrino. Estava eu lá no Centro Médico, tinha acabado de sair da sessão de terapia, e decidi ligar para a marcação de consulta para saber se havia alguma especialidade médica com vaga disponível para aquela tarde. Eu já estava lá mesmo, e já estava na hora de marcar as tais revisões. A atendente, sorridente do outro lado da linha, disparou:

– Senhora, temos uma vaga agora mesmo para o otorrino! Quer que eu marque?

Não estava nos planos ouvir que havia vaga para o otorrino. Imaginei o oftalmologista, a ginecologista… Mas aí lembrei que já fazem alguns anos (sim, anos!!!) que sinto um pouco de falta de ar quando faço muita atividade intensa, precisando respirar pela boca. Lembrei também de uma dorzinha de cabeça chatinha que me persegue também há anos (e eu mesma diagnostiquei como enxaqueca!) e lembrei da sensação de estar sempre engolindo alguma coisa, como se houvesse um bolinho de carne na garganta.

– Ah, ótimo. Estava mesmo precisando de um otorrino! Pode marcar!

Dirigi-me à recepção, entreguei os documentos e comecei a mexer distraidamente no celular, enquanto aguardava ser chamada.

– Alane, sala 6!

Ouvi um berro. Berro mesmo! E fiquei perdida sem saber de onde vinha, porque a recepcionista continuava calada, entretida na frente do computador. Encontrei a sala 6 e descobri que quem me gritava era o médico (que será aqui chamado de Dr. X). Um senhor de seus 60 e poucos anos, magrinho, calvo e de bigode. Segui até a sala 6, ele já havia entrado lá. Ao abrir a porta, ele pediu que eu sentasse. Imediatamente ele levantou, saiu em disparada, resmungando alguma coisa que não consegui compreender e me deixou lá meio perdida. Voltou e me encostou na parede:

– Vamos lá, mocinha! Qual a sua queixa?

Expliquei o que já contei acima, meio insegura sobre os sintomas. Sem saber exatamente se ele ajudaria, se havia algo11 de errado comigo mesmo ou se ele daria uma gargalhada sutil e me mandaria procurar outro especialista. Mas não, ele começou um interrogatório. Tipo interrogatório meeeeesmo! Me senti na frente de um um juiz, um delegado ou algo do gênero.

– E você sente uma dor na cabeça, que sempre acha que é enxaqueca?

(Nossa, ele tem bolinha de cristal, pensei). Fiz uma afirmação contundente com a cabeça.

– E você sente falta de ar? Costuma acordar de madrugada com essa sensação de que o ar está faltando? E sente como se tivesse com o ouvido entupido? E costuma espirrar? Mas o espirro é uma vez só (e fez o som do “atchim”) ou você espirra duas, três vezes seguidas (e fez o som do “atchim, atchim, atchim”)? Essa resposta do espirro é muito importante para mim. Pense direitinho! E você sente como se algum alimento em sua garganta estivesse voltando? Fica rouca com frequência? Tosse muito? Pense bem que tudo isso é muito importante!

Foram tantas, tantas, tantas perguntas, que fiquei bem atrapalhada, tentando me recordar do que eu sentia, afinal. Eram sintomas de anos e para mim já pereciam bastante normais. Tentei ser o mais precisa possível, percebi que eu tinha vários dos sintomas que ele perguntava e nem tinha me tocado disso antes. E fui respondendo aos poucos, até que ele chega bem perto de mim, coloca as mãos no meu rosto e pressiona os dois dedos polegares na região da testa, logo acima dos olhos.

Dou um berro, senti uma dor insuportável. E ele, ignorando completamente meu gemido de dor, repete o mesmo movimento com os dedos entre os meus olhos, no início do nariz; e depois nas bochechas. Mais dois gritos de dor, cheguei a tentar afastar as mãos dele. Meio surreal. Daí ele tira os dedos, olha pra meu rosto e dispara:

– Você tem o rosto totalmente assimétrico, você sabia disso?

(Oi???????)

– Um lado de seu rosto é completamente diferente do outro. O normal é que fossem mais simétricos. Mas no seu caso um lado é bem diferente do outro!

(Hein??????)

11Fiquei meio sem saber o que responder. Enquanto ainda penso na afirmação dele, ele me manda abrir a boca, falar “aaaaaaaaaaaa”, coloca o palito na língua, olha, olha, olha.. vira, pega uma embalagem de alguma coisa e dispara o spray em minha garganta. Atordoada, começo a sentir tudo anestesiando… Pergunto a ele se é para engolir (eu já estava começando a engolir o tal produto). Ele solta um novo berro:

– Nãããããão!!! É para cuspir!

Joga uma vasilha de metal em meu colo, dois lenços em papel em minhas mãos. Volta-se para a mesa ao lado da cadeira em que estou deitada e, repentinamente, dispara a falar da situação do País, dos pacientes, dos médicos mais moços.

– É uma falta de respeito!! Você acredita que de sete pacientes hoje, só vieram quatro? E ninguém liga para avisar! Ninguém tem o mínimo de consideração pelo médico! Toda sexta-feira é isso!

Concordo com a cabeça, com a garganta anestesiada, uma sensação angustiante… Solto um “O problema são definitivamente as pessoas, os valores por aqui andam meio invertidos” sem saber direito se cabia à pergunta, de tão tensa que eu estava. Ele vira pra mim de novo, diz que precisa ver minhas laringes, me manda abrir a boca e enfia um tubo lá dentro, com a maior naturalidade… Arregalo os olhos, a vontade é tirar a mão dele dali e sair correndo, mas resisto, com vergonha… Ele continua:

– Por isso que esse país está assim, caótico! São as pessoas mesmo. Você sabe que o País vai desmoronar, não é? Você já sabe o que vai fazer? Já traçou seu plano B? Tem algum amigo ou parente fora do País para te dar abrigo? Eu vou embora deste País! Daqui a três meses vou morar na França. Vou pedir asilo político! Aqui não podemos ser de direita, somos perseguidos pelo PT. Não podemos ter um pensamento liberal!

Ele tira o aparelho, pensa alto “preciso olhar sua traqueia. Tenho certeza do que esperar de sua traqueia”. Vira de costas de novo, e continua seu desabafo:

– Você sabia que se pedir asilo político, tudo fica mais fácil para você? Eles te recebem, te oferecem um lugar para morar. Te dão um valor para você se manter. Entregam um cartão de identidade e você poderá ficar lá até a situação aqui no Brasil melhorar.

Volta-se pra mim de novo, joga um líquido em minhas narinas, sinto tudo anestesiar de novo, e lá vem ele com o tal aparelho enfiando no meu nariz! Fico acuada, é verdade, arregalo os olhos de novo. E ele dispara:

– Qual é o seu plano B, mocinha? O caos vai se instalar em seis meses, um ano no máximo.

Só consigo dizer a ele: “Neste momento, com esse troço dentro do meu nariz, eu não consigo nem raciocinar sobre meu plano A, quem dirá o B”.

Ele vira de costas de novo, fala mais uma vez consigo mesmo em voz alta: “Vai precisar cauterizar”. Eu continuo ali, 11estatelada na cadeira, sem me mover. E ele insiste, ainda de costas: “Preciso saber seu plano B”. Inspirada numa conversa recente que tive com uma amiga, disparo, tentando encontrar qualquer plano B que fosse convincente naquele momento: “Meu plano B é ir embora pra Portugal, fazer mestrado por lá”. Ele questiona: “Já tirou seu passaporte? Você não terá muito tempo. Precisa resolver isso pra ontem”. Eu respondo: “Vou resolver isso esta semana ainda, minha avó nasceu lá, deve facilitar”. Ele diz: “Ótimo, ótimo. O seu plano B é bom. Veja logo a faculdade”.

Novamente ele se vira pra mim, vejo que tem alguma coisa com um fogo ligado em cima da mesa, ele volta a jogar spray em meu nariz e enfia um tubo de um lado e do outro. Sinto um incômodo horroroso. Me dá vontade de sair correndo de novo! Resmungo de dor e bem baixinho: “Acho que a anestesia não funcionou muito bem”. Ele não responde, acho que nem ouviu. Tira os troços das minhas narinas, que começam a escorrer. Ele me dá vários lenços de papel e me manda assoar o nariz. Obedeço.

Ele continua, enquanto eu gasto todos os lenços: “Eu sabia. Você tem um quadro evoluído de sinusite. Tem rinite alérgica e um pequeno desvio no septo nasal. Pare imediatamente de tomar café e refrigerante, comer pimenta, chocolate e frutas cítricas. Eu vou te curar dessa sinusite e vamos tratar sua rinite alérgica. Será um tratamento longo, a princípio de 90 dias”.

Preocupada com a história do desvio, pergunto a ele: “e o desvio do septo nasal, Dr., é grave?”. Ele me diz que cuidaremos do septo nasal depois e me dá uma bronca velada por não ter procurado um médico antes. Informo a ele: “Mas eu já fui pra otorrino diversas vezes na vida. Eu nunca tive um diagnóstico assim. Até já tive crise de sinusite há muitos anos e… “. Ele não perde tempo, me interrompe e volta a disparar a metralhadora verbal:

– Sabe qual é o problema? Esses médicos de hoje! Eles lidam com o paciente como se o paciente fosse um inimigo querendo destruir sua vida profissional, com um processo! Muitos são orientados por advogados, sabia? Aí os médicos passam exames e mais exames e querem simplesmente se livrar dos pacientes. Eles não dão diagnósticos. E aí acontece o que aconteceu com você. Ficam penando com sintomas simples de serem resolvidos. Um verdadeiro absurdo. Esse país não tem mais jeito mesmo. Tudo culpa das pessoas…

Ele continua resmungando, enquanto me entrega uma receita médica. Me orienta a tomar três medicamentos: um por cinco dias, o segundo por 60 dias, e o terceiro por 90 dias. Ele me diz que o tratamento será longo, que terei de passar uns dois ou três anos acompanhada por ele. Mas que depois do tratamento serei uma nova mocinha. Me diz para evitar ingerir lactose. Fico arrasada com essa informação e já resisto em segui-la. Chocolate, tudo bem, Mas lactose??? Ah, não.

Ele me dá um outro papel e me diz que devo entregá-lo à recepcionista. Despede-se de mim rapidamente, me diz para voltar com 60 dias. Levanto, saio da sala e leio o papel. Lá tem dois itens descritos. O primeiro diz: laringoscopia e traqueoscopia. O segundo: corneto inferior cauterização linear. Chego em casa e pergunto ao Dr. Google o que significava cada um daqueles procedimentos. No final da consulta mais sem noção que tive na vida, saio ao menos com a sensação de que alguém finalmente tinha conseguido achar um diagnóstico pros sintomas que eu sentia há anos e que eu nem sabia que significava alguma coisa.

Quando saí da clínica, pensei a frase que deu nome a esse texto: “Era para ser só uma consulta com o otorrino”. Imaginei que entraria no consultório, sairia com exames a fazer, voltaria em alguns dias…  Não estava psicologicamente preparada para aquela sessão de horror. Não sei vai dar certo, mas saí animada para começar o tratamento e já pensando o que me espera daqui a 60 dias no nosso reencontro. Tentarei marcar novamente a terapeuta antes dele. Mas certamente o tema do meu encontro com ela será outro.

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